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UMA
FESTA MUITO ESPERADA Quando
o Sr. Bilbo Bolseiro de Bolsão anunciou que
em breve celebraria seu onzentésimo primeiro
aniversário com uma festa de especial grandeza,
houve muito comentário e agitação na Vila dos
Hobbits. Bilbo
era muito rico e muito peculiar, e tinha sido
a atração do Condado por sessenta anos, desde
seu notável desaparecimento e inesperado retorno.
As riquezas trazidas de suas viagens tinham
agora se transformado numa lenda local, e popularmente
se acreditava que a Colina em Bolsão estava
cheia de túneis recheados com tesouros. E se
isso não fosse o suficiente para se ter fama,
havia também seu vigor prolongado que maravilhava
as pessoas.
O tempo passava, mas parecia ter pouco efeito
sobre o Sr. Bolseiro. Aos noventa anos,
parecia ter cinqüenta. Aos noventa e nove, começaram
a chamá-lo de bem-conservado; mas inalterado ficaria mais próximo da realidade. Havia pessoas que balançavam
a cabeça e pensavam que isso era bom demais;
parecia injusto que qualquer pessoa possuísse
(aparentemente) a juventude perpétua, além de
(supostamente) uma riqueza inexaurível.
Isso terá seu preço diziam eles. Não é natural
e trará problemas. Mas
até agora os problemas não haviam chegado, e
como o Sr. Bolseiro era generoso com seu dinheiro,
a maioria das pessoas estava disposta a perdoar
suas esquisitices e sua boa sorte. Continuou
se relacionando em termos de cortesia com sua
família (com exceção, é claro, dos Sacola-bolseiros),
e tinha muitos admiradores devotados entre os
hobbits de famílias pobres e sem importância.
Mas não tinha amigos íntimos, até que seus primos
mais jovens começaram a crescer. O
mais velho deles, e favorito de Bilbo, era o
jovem Frodo Bolseiro. Quando Bilbo tinha noventa
e nove anos, adotou Frodo como seu herdeiro,
e o trouxe para viver em Bolsão, e os Sacola-bolseiros
finalmente perderam as esperanças. Por acaso,
Bilbo e Frodo faziam aniversário no mesmo dia,
22 de setembro. – Seria melhor que você viesse
morar aqui, Frodo, meu rapaz! – disse Bilbo
um dia –, e então poderemos comemorar nossos
aniversários juntos e com mais conforto. Nessa
época Frodo ainda estava na vintolescência, que é como os hobbits chamavam
os anos irresponsáveis entre a infância e a
maioridade aos trinta e três anos. Mais
doze anos se passaram. Todo ano os Bolseiros
davam animadas festas duplas de aniversário
em Bolsão; mas agora se entendia que alguma
coisa muito excepcional estava sendo planejada
para aquele outono. Bilbo ia fazer onzenta
e um anos, 111, um número bastante curioso,
e uma idade muito respeitável para um hobbit
(mesmo o Velho Tûk só havia chegado aos 130);
e Frodo ia fazer trinta e três, 33, um número importante:
o ano em que se tornaria um adulto. As
línguas começaram a se agitar na Vila dos Hobbits
e em Beirágua, e rumores do evento que se aproximava
viajaram por todo o Condado. A história e a
personalidade do Sr. Bilbo Bolseiro se tornaram
novamente o assunto principal das conversas,
e as pessoas mais velhas repentinamente encontraram
grande receptividade para suas lembranças. Ninguém
tinha uma platéia mais atenta que o velho Ham
Gamgi, geralmente conhecido como Feitor. Ele
contava histórias no Ramo de Hera, uma pequena hospedaria na
estrada de Beirágua, e falava com certa autoridade,
pois tinha cuidado do jardim de Bolsão por quarenta
anos, e tinha ajudado o velho Holman no mesmo
serviço antes disso. Agora que ele estava ficando
velho e com as juntas endurecidas, o serviço
era feito principalmente por seu filho Sam Gamgi.
Tanto pai quanto filho tinham relações muito
boas com Bilbo e Frodo. Moravam na própria Colina,
no número 3 da rua do Bolsinho, logo abaixo
de Bolsão. –
O Sr. Bilbo é um hobbit muito cavalheiro e gentil,
como eu sempre disse – declarava o Feitor. E
dizia a mais perfeita verdade: Bilbo era gentil
com ele, chamando-o de Mestre Hamfast, e constantemente
o consultava sobre o cultivo de legumes – em
se tratando de “raízes”, especialmente batatas,
o Feitor era considerado por todos na vizinhança
(inclusive ele próprio) a autoridade mais importante.
–
Mas e esse Frodo que mora com ele? – perguntou
o Velho Noques de Beirágua. – O seu nome é Bolseiro,
mas ele tem muito dos Brandebuques, pelo que
dizem. Eu não entendo o motivo pelo qual um
Bolseiro da Vila dos Hobbits vai procurar uma
esposa lá na Terra dos Buques, onde as pessoas
são tão estranhas. –
Não é de admirar que sejam estranhas – acrescentava
Papai Doispé (o vizinho de lado do Feitor) –,
pois eles moram do lado errado do rio Brandevin
e bem perto da Floresta Velha. Aquele é um lugar
escuro e ruim, se metade das histórias for verdade. –
Você está certo, Pa! – disse o Feitor. – Não
é que os Brandebuques da Terra dos Buques morem
na Floresta Velha; mas eles são uma raça estranha, ao que parece.
Vivem para cima e para baixo de barco naquele
rio grande – e isso não é natural. Não é de
espantar que surjam problemas. Mas, seja como
for, o Sr. Frodo é um jovem hobbit tão gentil
quanto se poderia desejar. Exatamente como o
Sr. Bolseiro. Afinal de contas, seu pai era
um Bolseiro. Um hobbit decente e respeitável,
o Sr. Drogo Bolseiro; nunca houve o que dizer
dele, até que morreu afogado. –
Afogado? – disseram várias vozes. Já tinham
ouvido este e outros rumores mais sombrios antes,
é claro; mas os hobbits têm uma paixão por histórias
familiares e estavam prontos para ouvir esta
de novo. –
Bem, é o que dizem – disse o Feitor. – Veja
você: o Sr. Drogo se casou com a pobre Sra.
Prímula Brandebuque. Ela era prima em primeiro
grau do nosso Sr. Bilbo por parte de mãe (a
mãe dela era a filha mais jovem do Velho Tûk);
e o Sr. Drogo era primo dele em segundo grau.
Desse modo, o Sr. Frodo é filho dos primos do
Sr. Bilbo em primeiro e segundo grau, e seu primo com o intervalo
de uma geração, você me entende? E o Sr. Drogo
morava na Sede do Brandevin com o sogro, o velho
Mestre Gorbadoc, como sempre fez depois de seu
casamento (tinha um fraco por comida e o Velho
Gorbadoc mantinha uma mesa bastante generosa);
e saíram para andar
de barco no rio Brandevin, e ele e sua esposa
morreram afogados; e o pobre Sr. Frodo era apenas
uma criança na época. –
Ouvi dizer que eles foram para a água depois
do jantar e sob o luar – disse o Velho Noques
–; e que foi o peso de Drogo que afundou o barco. –
E eu
ouvi que ela o empurrou, e ele a puxou para
dentro da água depois que ele tinha caído –
disse Ruivão, o moleiro da Vila dos Hobbits. –
Você não deveria dar ouvidos a tudo o que falam,
Ruivão – disse o Feitor, que não gostava muito
do moleiro. – Não tem sentido ficar falando
sobre empurrar e puxar. Os barcos são muito
traiçoeiros até para aqueles que se sentam quietinhos
sem procurar problemas. De qualquer jeito: foi
assim que o Sr. Frodo se tornou um órfão e ficou
perdido, como se pode dizer, em meio àquele
estranho povo da Terra dos Buques e foi criado
na Sede do Brandevin. Aquilo geralmente já é
um formigueiro de tão cheio. O velho Mestre
Gorbadoc nunca teve menos do que duzentos parentes
nas redondezas. O Sr. Bilbo não poderia ter
feito coisa melhor do que trazer o menino para
morar entre gente decente. –
Mas acho que esse foi um golpe duro para aqueles
Sacola-bolseiros. Eles acharam que iam ficar
com Bolsão na época em que ele foi embora e
foi considerado morto. E então ele volta e os
manda sair, e continua vivendo e vivendo, e
nem parecendo um dia mais velho, puxa vida!
E de repente arranja um herdeiro, e arruma toda
a documentação necessária. Os Sacola-bolseiros
nunca vão entrar em Bolsão depois disso, ou
pelo menos se espera que não. –
Tem um monte de dinheiro enfiado lá dentro,
ouvi dizer – disse um estranho, um visitante
que estava a negócios vindo de Grã Cava, na
Quarta Oeste. – Todo o topo de vossa colina
está cheio de túneis recheados de baús de ouro
e prata, e jóias, pelo que ouvi dizer. –
Então você ouviu mais do que eu posso discutir
– respondeu o Feitor. – Não sei de nada sobre
jóias. O Sr. Bilbo não faz muita economia com seu dinheiro, e parece
que não há falta dele; mas não sei nada sobre
túneis. Vi o Sr. Bilbo quando voltou, mais ou
menos sessenta anos atrás, quando eu era um
menino. Não fazia muito tempo que eu era um
aprendiz do velho Holman (ele era primo do meu
pai), mas mesmo assim me pediu que fosse a Bolsão
para ajudá-lo a evitar que as pessoas pisoteassem
a grama e ficassem andando pelo jardim quando
a toca estava à venda. E em meio a tudo isso
o Sr. Bilbo vem subindo a colina com um pônei,
alguns sacos bem grandes e uns baús. Não duvido
que estivessem em sua maioria cheios de tesouros
que ele apanhou em lugares distantes, onde há
montanhas de ouro, dizem por aí; mas não havia
o bastante para encher túneis. Mas o meu menino
Sam deve saber mais sobre isso. Ele vive entrando
e saindo de Bolsão. É louco por histórias de
antigamente, isso ele é, e escuta todas as histórias
do Sr. Bilbo. O Sr. Bilbo ensinou-lhe suas letras
– sem querer causar maldade, veja bem, e espero
que nenhuma maldade venha disso. –
Elfos
e Dragões!, digo eu pra ele. Repolho
com batatas é melhor para você e para mim. Não
vá se misturar com os negócios que não são para
o seu bico, ou você vai arranjar problemas muito
grandes para você, digo eu pra ele. E posso
dizer para outros – acrescentou ele, olhando
para o estranho e para o moleiro. Mas
o Feitor não convenceu sua platéia. A lenda
sobre a riqueza de Bilbo estava fixada de maneira
muito firme nas mentes das gerações mais jovens
de hobbits. –
Ah! mas ele pode muito bem ter juntado mais
ao que trouxe no início – argumentou o moleiro,
representando a opinião geral. – Ele está sempre
longe de casa. E reparem nas pessoas bizarras
que vêm visitá-lo: anões que chegam à noite,
e aquele velho mágico andarilho, Gandalf, e
todo o resto. Você pode dizer o que quiser,
Feitor, mas Bolsão é um lugar estranho, e as
pessoas de lá são mais estranhas ainda. –
Você pode dizer o que quiser sobre coisas que
não conhece melhor do que a história do barco,
senhor Ruivão – retorquiu o Feitor, apreciando
ainda menos o moleiro do que de costume. – Se
isso é ser estranho, então poderíamos ter mais
estranheza por aqui. Tem gente não muito longe
daqui que não ofereceria uma caneca de cerveja
a um amigo, nem se vivesse numa toca
com paredes de ouro. Mas em Bolsão eles fazem
as coisas direito. O nosso Sam disse
que todo mundo vai ser convidado para a festa,
e vai haver presentes, vejam bem, presentes
para todos – neste mesmo mês. Aquele
mesmo mês era setembro, e estava agradável como
se poderia desejar. Um ou dois dias depois se
espalhou um rumor (provavelmente começado pelo
informado Sam) de que iria haver fogos de artifício
– fogos de artifício, além do mais, como não
se via no Condado há mais de um século; na verdade,
desde que o Velho Tûk havia morrido. Os
dias se passaram e O Dia se aproximava. Uma
carroça de aparência estranha, carregada de
pacotes de aparência estranha, rodou numa noite
até a Vila dos Hobbits e foi subindo a Colina
até chegar a Bolsão. Os hobbits assustados espiavam
de portas iluminadas com lamparinas para ver,
embasbacados. Era conduzida por pessoas bizarras,
que cantavam canções estranhas: anões com barbas
longas e capuzes fundos. Alguns deles ficaram
em Bolsão. No final da segunda semana de setembro
uma charrete passou por Beirágua vinda da Ponte
do Brandevin em plena luz do dia. Um homem a
conduzia, sozinho. Usava um chapéu azul, alto
e pontudo, uma longa capa cinza e um cachecol
prateado. Tinha uma longa barba branca e sobrancelhas
densas que sobressaíam da borda de seu chapéu.
Crianças hobbit seguiram a charrete pelas ruas
da Vila dos Hobbits e colina acima. Era um carregamento
de fogos de artifício, como eles muito bem adivinharam.
Na porta da frente de Bilbo, o homem começou
a descarregar: havia grandes pacotes de fogos
de artifício de todos os tipos e formatos, cada
um rotulado com um G grande e vermelho com a
runa élfica. Essa
era a marca de Gandalf, é claro, e o velho era
Gandalf, o Mago, cuja fama no Condado se devia
principalmente ao seu talento com fogos, fumaça
e luzes. Seu ofício real era muito mais difícil
e perigoso, mas o pessoal do Condado não sabia
nada sobre isso. Para eles, ele era apenas uma
das “atrações”
da Festa. Por isso a excitação das crianças
hobbit. “G de Grande”, gritavam elas,
e o velho sorria. Conheciam-no de vista, embora
ele aparecesse na Vila dos Hobbits de vez em
quando e nunca ficasse por muito tempo. Mas
nem eles, nem os mais velhos dentre os velhos
tinham visto uma de suas exibições de fogos
de artifício – elas agora pertenciam a um passado
lendário. Quando
o velho, ajudado por Bilbo e alguns anões, terminou
de descarregar, Bilbo distribuiu uns trocados;
mas não houve nem um buscapé ou bombinha, para
a decepção dos observadores. –
Saiam agora! – disse Gandalf. – Vocês vão ver
bastante quando a hora chegar. – Depois desapareceu
para dentro com Bilbo, e a porta foi fechada.
Os jovens hobbits ficaram olhando em vão para
a porta por um tempo, e então foram embora,
sentindo que o dia da festa nunca chegaria. Dentro
de Bolsão, Bilbo e Gandalf estavam sentados
perto da janela aberta de uma pequena sala que
dava para o oeste, sobre o jardim. O fim de
tarde estava claro e quieto. As flores brilhavam,
vermelhas e douradas: bocas-de-leão e girassóis
e nastúrcios que subiam pelas paredes verdes
e espiavam pelas janelas redondas. –
Como o seu jardim está bonito! – disse Gandalf. –
É – disse Bilbo. – Eu gosto muito dele, e de
todo o velho e querido Condado, mas acho que
preciso de férias. –
Quer dizer então que você pretende continuar
com seu plano? –
Pretendo. Tomei a decisão há alguns meses, e
não mudei de idéia. –
Muito bem. É melhor não dizer mais nada. Continue
com seu plano – seu plano completo, veja bem
– e espero que tudo saia da melhor maneira possível,
para você e para todos nós. –
Espero que sim. De qualquer forma, quero me
divertir na quinta-feira, e fazer minha brincadeirinha. –
Me pergunto quem vai rir... – disse Gandalf,
balançando a cabeça. –
Veremos – disse Bilbo. No
dia seguinte, charretes e mais charretes subiram
a Colina. Pode ter havido alguma reclamação
sobre “negócios locais”, mas nessa mesma semana
Bolsão começou a desovar encomendas de todo
tipo de provisão, mercadoria ou artigo de luxo
que se pudesse conseguir na Vila dos Hobbits
ou em Beirágua, ou em qualquer outro lugar nas
redondezas. As pessoas ficaram entusiasmadas
e começaram a marcar os dias no calendário,
e vigiavam o carteiro com ansiedade, esperando
convites. Em
breve os convites começaram a se espalhar, e
o correio da Vila dos Hobbits ficou entupido,
e choveram cartas no correio de Beirágua, e
carteiros auxiliares voluntários foram requisitados.
Em fluxo constante subiam a Colina, carregando
centenas de variações polidas de Agradeço o convite e confirmo minha presença. Um
aviso apareceu no portão de Bolsão: ÉPROIBIDA
A ENTRADA DE PESSOAS QUE NÃO VENHAM TRATAR DOS
PREPARATIVOS DA FESTA. Mesmo a entrada daqueles que estavam,
ou fingiam estar, tratando dos preparativos
da festa era raramente permitida. Bilbo estava
ocupado: escrevendo convites, checando respostas,
embrulhando presentes e fazendo alguns preparativos
particulares. Desde a chegada de Gandalf ele
havia sumido de vista. Um
dia de manhã os hobbits acordaram e viram o
grande campo, ao sul da porta de frente de Bilbo,
cheio de cordas e paus para barracas e pavilhões.
Uma entrada especial foi aberta na ladeira que
levava até a estrada, e degraus largos e um
grande portão branco foram construídos ali.
As três famílias hobbit da rua do Bolsinho,
vizinha ao campo, ficaram extremamente interessadas
e em geral sentiram inveja. O velho Feitor Gamgi
até parou de fingir que trabalhava em seu jardim. As
barracas começaram a ser levantadas. Havia um
pavilhão especialmente grande, tão grande que
a árvore que crescia no campo cabia direitinho
dentro dele, e se erguia altaneira próxima a
um canto, na cabeceira da mesa principal. Lanternas
foram penduradas em todos os seus galhos. Mais
promissor ainda (para as mentes dos hobbits):
uma enorme cozinha a céu aberto foi construída
no canto norte do campo. Um batalhão de cozinheiros,
de todas as hospedarias e restaurantes num raio
de milhas, chegou para ajudar os anões e outras
pessoas estranhas que estavam aquarteladas em
Bolsão. A agitação chegou ao máximo. Então
o céu ficou cheio de nuvens. Foi na quarta-feira,
véspera da Festa. A ansiedade era grande. A
quinta-feira, 22 de setembro, finalmente chegou.
O sol se levantou, as nuvens desapareceram,
bandeiras foram desfraldadas e a diversão começou. Bilbo
Bolseiro chamava aquilo de festa, mas na verdade era uma variedade de entretenimentos reunidos num só. Praticamente
todos os que moravam ali por perto foram convidados.
Muito poucos foram esquecidos por acidente,
mas, como vieram de qualquer jeito, não se importaram.
Muitas pessoas de outras partes do Condado também
foram convidadas; e houve até algumas que vieram
de regiões fora dos limites. Bilbo recebeu em
pessoa os convidados (e agregados) no novo portão
branco. Distribuiu presentes para todos e mais
alguns – estes eram aqueles que saíam por uma
porta lateral e entravam de novo pelo portão.
Os hobbits dão presentes para outras pessoas
em seus aniversários. Em geral não muito caros,
e não tão generosos como nesta ocasião; mas
esse sistema não era ruim. Na verdade, na Vila
dos Hobbits e em Beirágua quase todos os dias
alguém fazia aniversário, de modo que todos
os hobbits tinham uma grande chance de ganhar
no mínimo um presente, pelo menos uma vez por
semana. Mas nunca se cansavam de presentes. Nessa
ocasião, os presentes foram inusitadamente bons.
As crianças hobbit estavam tão excitadas que
por um tempo quase se esqueceram de comer. Havia
brinquedos que eles nunca tinham visto antes,
todos lindos e alguns obviamente mágicos. Muitos
deles, na verdade, encomendados um ano antes,
tinham percorrido todo o caminho vindo da Montanha
e de Valle, e eram produtos genuínos feitos
por anões. Quando
todos os convidados tinham recebido as boas-vindas
e estavam finalmente do lado de dentro, houve
canções, danças, música, jogos e, é claro, comida
e bebida. Houve três refeições oficiais: almoço,
chá e jantar (ou ceia). Mas o almoço e o chá
foram marcados pelo fato de que nesses momentos
todos estavam sentados e comendo juntos. Em
outros momentos havia simplesmente montes de
pessoas comendo e bebendo – continuamente, das
onze até as seis e meia, quando os fogos de
artifício começaram. Os
fogos eram de Gandalf: não foram apenas trazidos
por ele, mas projetados e fabricados por ele;
e os efeitos especiais, cenários e foguetes
era ele quem controlava. Mas também houve farta
distribuição de buscapés, bombinhas, fósforos
coloridos, tochas, velas-de-anões, fontes-élficas,
fogos-de-orcs e rojões. Era tudo soberbo. A
arte de Gandalf havia se aperfeiçoado com o
passar dos anos. Havia
foguetes imitando o vôo de pássaros cintilantes
cantando com vozes doces. Havia árvores verdes
com troncos de fumaça escura: suas folhas se
abriam como uma primavera inteira que florescesse
num segundo, e seus ramos brilhantes derrubavam
flores de luz sobre os hobbits atônitos, desaparecendo
com um cheiro doce um pouco antes que pudessem
tocar seus rostos voltados para o céu. Havia
montes de borboletas que voavam por entre as
árvores; havia pilares de fogos coloridos que
subiam e se transformavam em águias, em caravelas,
ou numa falange de cisnes voadores; havia uma
tempestade vermelha e uma chuva de gotas amarelas;
houve uma floresta de lanças de prata que surgiram
repentinamente no céu com um grito como um exército
em batalha, e caíram no Água com um chiado como
uma centena de cobras incandescentes. E houve
também uma última surpresa em homenagem a Bilbo,
que assustou os hobbits além da conta, como
era a intenção de Gandalf. As luzes se apagaram.
Uma grande fumaça subiu. Tomou a forma de uma
montanha vista à distância, e começou a brilhar
no topo. Soltava chamas verdes e vermelhas.
Lá de dentro saiu um dragão de um vermelho dourado
– não do tamanho de um dragão real, mas terrivelmente
parecido com um dragão real: saía fogo de suas
mandíbulas e os olhos penetrantes olhavam para
baixo; houve um rugido, e por três vezes ele
zuniu sobre as cabeças da multidão. Todos se
inclinaram e muitos caíram de cara no chão.
O dragão passou como um trem expresso, virou
uma cambalhota, e explodiu sobre Beirágua com
um estrondo ensurdecedor. –
Este é o sinal para a ceia! – disse Bilbo. O
sofrimento e o medo desapareceram imediatamente,
e os hobbits prostrados se levantaram num segundo.
Havia uma ceia esplêndida para todos; para todos,
quer dizer, com a exceção daqueles convidados
para o jantar especial em família. Este aconteceu
no grande pavilhão onde estava a árvore. Os
convites foram limitados a doze dúzias (um número
também chamado de uma Grosa, embora a palavra
fosse considerada inadequada para se referir
a pessoas); e os convidados foram selecionados
de todas as famílias com as quais Bilbo e Frodo
tinham parentesco, havendo mais uns poucos amigos
que não eram parentes (como Gandalf). Muitos
hobbits jovens foram incluídos, e estavam presentes
com a permissão dos pais; pois os hobbits eram
liberais com suas crianças em se tratando de
ficar acordado até tarde, especialmente quando
havia uma chance de conseguir para elas uma
refeição de graça. Criar hobbits era muito dispendioso. Havia
muitos Bolseiros e Boffins, e também muitos
Tûks e Brandebuques; havia vários Fossadores
(parentes da avó de Bilbo Bolseiro), e vários
Roliços (relacionados ao seu avô Tûk) e uma
seleção de Covas, Bolgers, Justa-correias, Texugos,
Boncorpos, Corneteiros e Pé-soberbos. Alguns
desses tinham
apenas uma ligação distante com Bilbo, e outros
raramente tinham visitado a Vila dos
Hobbits antes, pois moravam em cantos remotos
do Condado. Os Sacola-bolseiros não foram esquecidos.
Otho e sua esposa Lobélia estavam presentes.
Não gostavam de Bilbo e detestavam Frodo, mas
o convite era tão magnífico, escrito em tinta
dourada, que eles acharam impossível recusar.
Além disso, Bilbo, seu primo, viera se especializando
em comida por muitos anos, e sua mesa gozava
de alta reputação. Todos
os cento e quarenta e quatro convidados esperavam
por um banquete agradável, embora estivessem
com um certo medo do discurso pós-ceia de seu
anfitrião (um quesito inevitável). Era provável
que ele inoportunamente começasse a recitar
trechos do que chamava de poesia e quem sabe,
depois de um ou dois copos, pudesse aludir às
absurdas aventuras de sua misteriosa viagem.
Os hóspedes não ficaram decepcionados: tiveram
um banquete muito agradável, na verdade um entretenimento
interessante: lauto, abundante, variado e prolongado.
As compras de provisões caíram quase a zero
em todo o distrito nas semanas seguintes; mas
como as provisões de Bilbo exauriram os estoques
das lojas, adegas e armazéns num raio de várias
milhas, isso não teve muita importância. Depois
do banquete (mais ou menos) veio o Discurso.
A maioria dos convidados estava, entretanto,
numa disposição tolerante, e naquele estágio
delicioso que eles chamavam de “encher os cantos”.
Estavam bebendo suas bebidas favoritas, e mordiscando
suas iguarias preferidas, e seus receios foram
esquecidos. Estavam preparados para ouvir qualquer
coisa, e aplaudir a cada ponto final. Queridos
convidados,
começou Bilbo, levantando de sua cadeira. “Escutem!
Escutem! Escutem!” – gritaram eles, e continuaram
repetindo isso em coro, parecendo relutantes
em seguir seu próprio conselho. Bilbo saiu de
seu lugar e subiu numa cadeira perto da árvore
iluminada. A luz das lanternas caía-lhe sobre
o rosto radiante; os botões dourados brilhavam
sobre o colete bordado. Todos podiam vê-lo em
pé, acenando uma mão no ar, e com a outra no
bolso da calça. Meus
queridos Bolseiros e Boffins,
começou de novo; e
meus queridos Tûks e Brandebuques e Fossadores
e Roliços e Covas e Corneteiros e Bolgers, Justa-correias,
Boncorpos, Texugos e Pé-soberbos. “Pé-soberbos!” – gritou um hobbit velho do fundo do
pavilhão. O seu nome, é claro, era Pé-soberbo.
E merecido: seus pés eram grandes, excepcionalmente
peludos, e ambos estavam sobre a mesa. Pé-soberbos, repetiu Bilbo. E
também meus bons Sacola-bolseiros, a quem finalmente
dou boas-vindas novamente em Bolsão. Hoje é
meu centésimo décimo primeiro aniversário: hoje
chego aos onzenta e um! “Viva! Viva! Que
essa data se repita por muitos anos!” – gritaram
todos, e bateram nas mesas alegremente. Isso
era o tipo de coisa de que eles gostavam. Curto
e óbvio. Espero
que estejam se divertindo tanto quanto eu.
Aplausos ensurdecedores. Gritos de Sim
(e Não).
Ruídos de trombetas e cornetas, apitos e flautas.
Havia, como foi dito, muitos hobbits jovens
presentes. Centenas de estojos musicais tinham
sido distribuídos. A maioria deles levava a
marca VALLE; o que não agradava à maioria dos
hobbits, mas todos eles concordavam que eram
maravilhosos. Continham instrumentos, pequenos,
mas de fabricação perfeita e de tons encantadores.
Na verdade, em um canto alguns dos Tûks e Brandebuques
jovens, supondo que o Tio Bilbo tivesse terminado
(uma vez que já tinha dito tudo o que era necessário),
agora improvisavam uma orquestra, e começavam
a tocar uma toada alegre e dançante. Mestre
Everard Tûk e a Srta. Melilot Brandebuque subiram
numa mesa e com sinos nas mãos começaram a dançar
a Ciranda do Pulo: uma dança bonita, mas bastante
vigorosa. Mas
Bilbo não tinha terminado. Pegando uma corneta
de uma criança ao seu lado, soprou forte três
vezes. O barulho silenciou. Eu
não vou me demorar muito – gritou ele. Aplausos
de toda a platéia. Chamei
todos vocês por um Motivo. Alguma coisa
no jeito como ele disse isso causou uma certa
impressão. Fez-se quase silêncio, e um ou dois
Tûks aguçaram os ouvidos. Na
verdade, por Três Motivos! Primeiramente, para
dizer a vocês que gosto imensamente de todos,
e que onzenta e um anos é um tempo curto demais
para viver entre hobbits tão excelentes e admiráveis. Tremenda explosão de aprovação. Eu
não conheço metade de vocês como gostaria; e
gosto de menos da metade de vocês a metade do
que vocês merecem.
Isso foi inesperado e muito difícil. Houve alguns
aplausos esparsos, mas a maioria deles estava
tentando descobrir se aquilo era um elogio. Em
segundo lugar, para comemorar meu aniversário. Aplausos novamente. Devo dizer
NOSSO aniversário. Pois hoje, é claro, é o aniversário
de meu herdeiro e sobrinho Frodo. Ele se torna
maior de idade e passa a ter acesso à herança
hoje. Alguns aplausos perfunctórios dos
mais velhos; e alguns gritos de “Frodo! Frodo!
Felizardo!” dos mais novos. Os Sacola-bolseiros
franziram a testa e se perguntaram o que ele
queria dizer com “ter acesso à herança”. Juntos perfazemos cento e quarenta e quatro anos. O número
dos convidados foi escolhido para combinar com
esse total notável: Uma Grosa, se me permitem
usar a expressão. Nenhum aplauso. Aquilo era ridículo. Muitos dos convidados,
especialmente os Sacola-bolseiros, sentiram-se
insultados, entendendo que tinham sido convidados
apenas para completar o número necessário, como
mercadorias num pacote. “Uma Grosa! Que expressão
vulgar!” Hoje
também é, se me permitem que me refira à história
antiga, o aniversário de minha chegada de barril
a Esgaroth, no Lago Comprido, embora o fato
de ser meu aniversário tenha escapado de minha
memória na ocasião. Eu tinha apenas cinqüenta
e um anos naquele tempo, e os aniversários não
pareciam tão importantes. O banquete foi esplêndido,
entretanto, embora eu estivesse com uma forte
gripe, posso me lembrar, e pudesse apenas dizer
“buito obrigado”. Agora eu repito a frase mais
corretamente: Muito obrigado por virem à minha
festinha. Silêncio obstinado. Todos sentiram que alguma canção ou
poesia era iminente; e eles estavam ficando
enfarados. Por que não parava de falar e os
deixava beber à sua saúde? Mas Bilbo não cantou
nem recitou. Ele parou por um momento. Em
terceiro lugar e finalmente,
disse ele, quero fazer um COMUNICADO. Disse esta palavra
tão alto e de repente que todo mundo se sentou
ereto na cadeira (os que ainda conseguiam).
Sinto
informá-los de que – embora, como eu disse,
onzenta e um anos seja muito pouco tempo para
passar ao lado de vocês – o FIM chegou. Estou
indo embora. JÁ. ADEUS! Desceu
da cadeira e desapareceu. Houve um clarão de
luz de cegar os olhos e todos os convidados
piscaram. Quando abriram os olhos, Bilbo não
estava em lugar algum. Cento e quarenta e quatro
hobbits pasmos se encostaram nas cadeiras sem
dizer nada. O velho Odo Pé-soberbo retirou seus
pés da mesa e pisou com força no chão. Então
caíram num silêncio mortal até que, depois de
vários suspiros, todos os Bolseiros, Boffins,
Tûks, Brandebuques, Fossadores, Roliços, Covas,
Bolgers, Justa-correias, Texugos, Boncorpos,
Corneteiros e Pé-soberbos começaram a falar
ao mesmo tempo. A
opinião geral era de que a brincadeira tinha
sido de muito mau gosto, e foi necessário trazer
mais comida e bebida para curar os convidados
do choque e do desconforto. “Sempre disse que
ele era louco” foi provavelmente o comentário
mais comum. Mesmo os Tûks (com umas poucas exceções)
acharam o comportamento de Bilbo absurdo. Naquele
momento a maioria deles ficou achando
que o seu desaparecimento não passava de mais
uma traquinagem ridícula. Mas
o velho Rory Brandebuque não tinha certeza.
Nem a idade nem aquele enorme jantar tinham
nublado suas faculdades mentais, e ele disse
à sua nora Esmeralda: – Tem algo suspeito aí,
querida! Acho que o louco do Bolseiro partiu
novamente. Velho bobo. Mas por que nos preocuparmos?
Ele não levou as provisões com ele. – E gritou
para Frodo mandar mais uma rodada de vinho. Frodo
era o único presente que não dizia nada. Por
um tempo ficou sentado em silêncio ao lado da
cadeira vazia de Bilbo e ignorou todos os comentários
e perguntas. Tinha gostado da brincadeira, é
claro, mesmo já estando a par de tudo. Teve
dificuldades para segurar o riso diante da surpresa
indignada dos convidados. Mas ao mesmo tempo
sentia-se numa encrenca: percebeu de repente
que adorava o velho hobbit. A maioria dos convidados
continuou comendo e bebendo e discutindo as
esquisitices de Bilbo Bolseiro, passadas e atuais;
mas os Sacola-bolseiros já tinham ido embora
furiosos. Frodo não queria mais ficar na festa.
Deu ordens para que mais vinho fosse servido;
então se levantou e esvaziou seu próprio copo
em silêncio à saúde de Bilbo e se esgueirou
para fora do pavilhão. Quanto
a Bilbo Bolseiro, mesmo durante o discurso ficara
tateando o anel de ouro em seu bolso: o anel
mágico que guardara em segredo por tantos anos.
Conforme desceu da cadeira, colocou o anel no
dedo e nunca mais foi visto por nenhum hobbit
na Vila dos Hobbits novamente. Foi
rapidamente de volta para sua toca e ficou por
um momento ouvindo com um sorriso os rumores
no pavilhão e os sons de pessoas se divertindo
em outras partes do campo. Depois entrou em
casa. Tirou a roupa de festa, dobrou e embrulhou
em papel crepom seu colete de seda bordado e
o guardou. Aí vestiu rapidamente uns trajes
velhos e desalinhados, e apertou em volta da
cintura um velho cinto de couro. Nele pendurou
uma pequena espada que estava numa bainha de
couro preta e gasta. De uma gaveta trancada,
cheirando a naftalina, retirou uma velha capa
e um capuz. Eles tinham sido guardados ali como
se fossem muito preciosos, mas estavam tão remendados
e manchados que mal se podia adivinhar a cor
original: provavelmente verde-escuro. Eram grandes
demais para ele. Então Bilbo entrou no escritório
e de uma grande caixa-forte tirou um fardo embrulhado
em panos velhos e um manuscrito com capa de
couro; e também um envelope bastante volumoso.
O livro e o fardo ele colocou em um saco pesado
que estava ali, já quase cheio. No envelope
colocou o anel de ouro, e sua fina corrente,
e então o selou e endereçou a Frodo. Primeiro
colocou-o sobre a lareira, mas de repente retirou-o
dali e o enfiou no bolso. Naquele momento a
porta se abriu e Gandalf entrou depressa. –
Alô! – disse Bilbo. – Estava pensando se você
ia aparecer. –
Fico feliz em encontrá-lo visível – respondeu
o mago, sentando-se numa cadeira. – Queria pegar
você aqui ainda e falar umas últimas coisas.
Suponho que você esteja sentindo que tudo saiu
de modo esplêndido e de acordo com seus planos... –
Sim – disse Bilbo. – Embora o clarão tenha sido
uma surpresa: se eu fiquei assustado, imagine
os outros. Um acréscimo seu, suponho. –
Foi. Você guardou sabiamente o anel em segredo
todos esses anos, e me pareceu necessário dar
aos seus convidados alguma coisa a mais que
parecesse explicar o seu súbito desaparecimento. –
E você quase estragou minha brincadeira. Você
é um velho intrometido! – disse Bilbo rindo.
– Mas acho que você é mais esperto, como sempre. –
Eu sou, quando sei das coisas. Mas não tenho
muita certeza sobre essa história toda. Chegamos
ao ponto final. Você fez sua brincadeira, e
alarmou e ofendeu a maioria de seus parentes,
e deu ao Condado assunto para mais nove anos,
ou mais noventa e nove, é mais provável. Você
vai continuar? –
Vou. Sinto que preciso de umas férias, bem longas,
como já disse antes. Provavelmente férias permanentes:
não tenho expectativas de voltar. Na verdade,
não quero voltar, e já fiz todos os preparativos.
Estou velho, Gandalf. Não parece, mas estou
começando a sentir isso no fundo de meu coração.
Bem conservado,
ora bolas! – bufou ele. – Estou me sentindo
todo fino, como se estivesse esticado,
se você sabe do que estou falando: como manteiga
que foi espalhada num pedaço muito grande de
pão. Isso não pode estar certo. Preciso de uma
mudança, ou coisa assim. Gandalf
fitou-o de perto, curioso. – Não, não parece
certo – disse ele sensatamente. – Não, afinal
de contas acho que seu plano é provavelmente
o melhor. –
Bem, de qualquer modo eu já me decidi. Quero
ver montanhas de novo, Gandalf – montanhas;
e depois encontrar algum lugar onde possa descansar.
Em paz e silêncio, sem um monte de parentes
se intrometendo e uma fila de malditos visitantes
na porta. Preciso encontrar um lugar onde possa
terminar meu livro. Pensei num bom final para
ele: e
ele viveu feliz para sempre. Gandalf
riu. – Espero que ele viva. Mas ninguém vai
ler o livro, não importa como seja o final. –
Oh, eles podem ler, nos anos futuros. Frodo
já leu um pedaço, até onde eu escrevi. Você
vai ficar de olho em Frodo, não vai? –
Vou!, com os dois olhos, sempre que eu puder. –
É claro que ele viria comigo se eu pedisse.
Na verdade se ofereceu uma vez, um pouco antes
da festa. Mas não quer realmente, ainda. Eu
quero ver o campo selvagem antes de morrer,
e as Montanhas; mas ele ainda está apaixonado
pelo Condado, com florestas e campos e pequenos
rios. Sente-se confortável aqui. Estou deixando
tudo para ele, é claro, com a exceção de algumas
bagatelas. Espero que seja feliz, quando estiver
acostumado a viver sozinho. Já é tempo de ele
ser dono do próprio nariz. –
Tudo? – perguntou Gandalf. – O anel também?
Você concordou com isso, lembra? –
Bem, sim, acho que sim – gaguejou Bilbo. –
Onde está ele? –
Num envelope, se quer saber – disse Bilbo impacientemente.
– Ali na lareira. Não! Aqui no meu bolso. –
Ele hesitou. – Não é estranho isso, agora? –
disse calmamente para si mesmo. – Afinal de
contas, por que não? Por que ele não deveria
ficar ali? Gandalf
olhou mais uma vez atentamente para Bilbo, e
havia um brilho em seus olhos. – Eu acho, Bilbo
– disse ele baixinho –, que você deveria deixá-lo
para trás. Você não quer? –
Bem, quero – e não quero. Agora que chegou a
hora, não gosto nem um pouco da idéia de me
separar dele. E não vejo por que deveria. Por
que você quer que eu faça isso? – perguntou
ele, e a sua voz se alterou de um modo estranho.
Estava carregada de suspeita e contrariedade.
– Você vive me chantageando com meu anel, mas
nunca me importunou com as outras coisas que
consegui na minha viagem. –
Não, mas eu tinha que chantagear você – disse
Gandalf. – Eu queria a verdade. Era importante.
Anéis mágicos são... bem, são mágicos; e são
raros e curiosos. Eu estava profissionalmente
interessado no seu anel, pode-se dizer, e ainda
estou. Quero saber onde ele está, se você for
embora por aí de novo. Também acho que você
o teve por tempo suficiente. Você não vai mais
precisar dele, Bilbo, a não ser que eu esteja
muito enganado. Bilbo
ficou vermelho, e havia um brilho furioso em
seu olhar. A expressão amigável se fez tensa.
– Por que não? – gritou ele. – E que negócio
é esse de você saber o que eu faço com minhas
próprias coisas? O anel é meu. Eu o achei. Ele
veio até mim. –
Sim, sim – disse Gandalf. – Mas você não precisa
ficar furioso. –
Se estou furioso, a culpa é sua – disse Bilbo.
– Ele é meu, estou dizendo. Meu. Meu precioso.
Sim, meu precioso. O
rosto do mago permaneceu grave e atento, e apenas
uma faísca nos olhos profundos demonstrou que
ele estava assustado e na verdade alarmado.
– Ele já foi chamado assim antes – disse ele.
– Mas não por você. –
Mas eu estou dizendo isso agora. E por que não?
Até mesmo Gollum disse a mesma coisa uma vez.
Agora o anel não é dele, é meu. E devo dizer
que vou ficar com ele. Gandalf
se levantou. Falou de modo ríspido. Você vai
ser um tolo se fizer isso, Bilbo disse ele.
Você torna isso claro a cada palavra que diz.
O anel se apoderou de você e isso foi longe
demais. Largue dele! E então você poderá ir
também, e ser livre.
Eu vou fazer como quiser e irei como desejar
disse Bilbo obstinadamente.
Agora, meu querido hobbit! disse Gandalf. Por
toda sua longa existência nós fomos amigos,
e você me deve alguma coisa. Vamos lá! Faça
como prometeu: desista dele!
Bem, se você quer o anel para você, diga logo!
gritou Bilbo. Mas você não vai tê-lo. Eu não
vou dar o meu precioso para ninguém. Sua mão
buscou o punho da pequena espada. Os
olhos de Gandalf brilharam. Logo será a minha
vez de ficar furioso disse ele. Se você disser
isso de novo, eu fico. Aí você verá Gandalf,
o Cinzento, se revelar. Deu uns passos em direção
ao hobbit, e parecia ficar cada vez mais alto
e ameaçador; sua sombra enchia toda a sala. Bilbo
recuou para a parede, resfolegando, a mão agarrada
ao seu bolso. Ficaram por um tempo olhando um
para o outro, e o ar da sala zunia. Os olhos
de Gandalf continuavam em cima do hobbit. Lentamente
suas mãos relaxaram e ele começou a tremer.
Não sei o que aconteceu com você, Gandalf! disse
ele. Você nunca foi assim antes. O que está
acontecendo? Ele é meu, não é? Eu o achei, e
Gollum teria me matado se eu não o tivesse guardado.
Não sou um ladrão, não importa o que ele tenha
dito.
Eu nunca chamei você de ladrão respondeu Gandalf.
E também não sou ladrão. Não estou tentando
roubar você, mas ajudá-lo. Eu queria que você
confiasse em mim como confiava. Ele se virou
e a sombra sumiu. Ele
pareceu diminuir, e voltou a ser um velho grisalho,
curvado e preocupado. Bilbo
passou a mão sobre os olhos. Sinto muito! disse
ele. Mas me senti tão estranho. E apesar disso
seria de certo modo um alívio não ter mais de
me preocupar com ele. Ele cresceu na minha mente
nos últimos tempos. Às vezes eu sentia que ele
era um olho me vigiando. Estou sempre sentindo
vontade de colocá-lo e desaparecer, sabe...
E me perguntando se ele está a salvo, e tocando
nele para ter certeza. Tentei trancá-lo, mas
descobri que não podia descansar sem ele no
bolso. Não sei por quê. Parece que não consigo
me decidir.
Então, confie em mim disse Gandalf. Já está
decidido. Vá embora e deixe-o aqui. Deixe de
possuí-lo. Dê-o a Frodo e eu tomarei conta dele. Bilbo
ficou parado por um momento, tenso e indeciso.
Depois suspirou. Está bem disse ele com um esforço.
Eu vou! Então encolheu os ombros e sorriu com
certa aflição. Afinal de contas, todo esse negócio
de festa foi por causa disso: distribuir um
monte de presentes de aniversário, e de alguma
forma facilitar as coisas para também dar o
anel. No final das contas, as coisas não ficaram
mais fáceis, mas seria uma pena desperdiçar
todos os meus preparativos. Estragaria a brincadeira.
Na verdade, destruiria o único motivo que eu
via na coisa toda disse Gandalf.
Muito bem! disse Bilbo. Ele vai para Frodo,
com todo o resto. Ele respirou fundo. E agora
devo ir, ou alguém vai me pegar. Eu disse adeus,
e não agüentaria fazer tudo de novo. Apanhou
seu saco e se dirigiu para a porta. É
mesmo! gritou Bilbo. E o meu testamento e todos
os outros documentos também. É melhor você pegá-lo
e entregá-lo em meu lugar. Será mais seguro.
Não, não dê o anel para mim disse Gandalf. Coloque-o
sobre a lareira. Estará a salvo lá até que Frodo
venha. Eu esperarei por ele. Bilbo
tirou o envelope, mas, no momento em que ia
colocá-lo ao lado do relógio, sua mão deu um
arranco para trás e o pacote caiu no chão. Antes
que Bilbo pudesse apanhá-lo, o mago pulou e
o agarrou, colocando-o em seu lugar. Um espasmo
de raiva passou de leve sobre o rosto do hobbit
outra vez. De repente o espasmo deu lugar a
uma aparência de alívio, com uma risada.
Bem, é isso disse ele. Agora vou indo! Eles
foram para o corredor. Bilbo escolheu sua bengala
favorita e assobiou. Três anões saíram de salas
diferentes, onde tinham estado ocupados.
Está tudo pronto? perguntou Bilbo. Tudo empacotado
e etiquetado? Bem, então vamos! Ele saiu pela
porta da frente. A
noite estava agradável, e o céu preto ponteado
de estrelas. Ele olhou para cima, sentindo o
ar. Que bom! Que bom estar partindo novamente,
partindo na Estrada com os anões! É isso que
eu realmente quis, por muitos anos! Adeus! disse
ele, olhando para sua velha casa e inclinando-se
para a porta. Adeus, Gandalf!
Adeus por enquanto, Bilbo. Cuide-se bem! Você
tem idade suficiente, e talvez também sabedoria.
Cuide-se! Eu não me preocupo. Não se preocupe
comigo. Estou mais feliz que nunca, e isso significa
muita felicidade. Mas chegou a hora. Meus pés
estão sendo impulsionados de novo, finalmente
acrescentou; e então, numa voz baixinha, como
se fosse para si mesmo, cantou suavemente no
escuro: A Estrada em frente vai
seguindo Deixando
a porta onde começa. Agora longe já vai indo, Devo seguir,
nada me impeça; Em seu encalço vão meus
pés, Até a junção
com a grande estrada, De muitas sendas através. Que vem depois?
Não sei mais nada. Parou
por um momento, silencioso. Então, sem mais
uma palavra, deu as costas às luzes e vozes
nos campos e barracas e, seguido por seus três
companheiros, deu a volta entrando no jardim
e foi descendo rápido o longo caminho. Pulou
a cerca-viva numa parte onde era mais baixa
e chegou às campinas, passando através da noite
como o farfalhar do vento na relva. Gandalf
ficou por um tempo olhando para ele, que sumia
na noite. Adeus, meu querido Bilbo, até nosso
próximo encontro! disse ele suavemente, e entrou
na casa. Frodo
entrou logo depois, e o encontrou sentado no
escuro, mergulhado em pensamentos. Ele se foi?
perguntou ele.
Sim respondeu Gandalf. Finalmente ele se foi.
Tomara, quero dizer, eu esperava até esta noite
que tudo fosse apenas uma brincadeira disse
Frodo. Mas no fundo eu sabia que ele realmente
queria ir. Queria ter entrado um pouco antes,
apenas para vê-lo partir.
Acho realmente que ele preferia escapulir despercebido
no final disse Gandalf. Não se preocupe muito.
Ele ficará bem agora. Ele deixou um pacote para
você. Ali está! Frodo
pegou o envelope da lareira e olhou-o, mas não
o abriu.
Nele você encontrará o testamento e todos os
outros documentos, eu acho disse o mago. Você
é o dono de Bolsão. E também, eu acho, você
vai encontrar um anel de ouro.
O anel! exclamou Frodo. Ele me deixou o anel?
Gostaria de saber por quê! Mas ele ainda pode
ser útil.
Pode ser e pode não ser disse Gandalf. Eu não
faria uso dele, se fosse você. Mas guarde-o
em segredo, e a salvo! Agora vou dormir. Como
dono de Bolsão, Frodo sentiu que era seu doloroso
dever dizer adeus a todos os convidados. Rumores
sobre acontecimentos estranhos tinham agora
se espalhado em todo o campo, mas Frodo apenas
dizia não
há dúvidas de que tudo será esclarecido de manhã.
Por volta da meia-noite, vieram carruagens para
as pessoas importantes. Uma a uma, elas foram
rolando colina abaixo, lotadas de hobbits saciados,
mas muito insatisfeitos. Vieram jardineiros,
e removeram com carrinhos de mão aqueles que
tinham inadvertidamente ficado para trás. A
noite passou lentamente. O sol nasceu. Os hobbits
acordaram muito mais tarde. A manhã passou.
Pessoas vieram e começaram (por ordem de alguém)
a retirar os pavilhões e as mesas e cadeiras,
e as colheres e facas e garrafas e pratos, e
as lanternas, e os arranjos de flores em caixas,
e os restos de papel de bombinhas, e bolsas
e luvas e lenços esquecidos, e a comida que
não tinha sido consumida (um item muito pequeno).
Então várias outras pessoas vieram (por ordem
de ninguém): Bolseiros e Boffins, e Bolgers,
e Tûks e outros convidados que moravam ou estavam
hospedados em lugares próximos. Por volta do
meio-dia, quando até os mais bem alimentados
estavam a todo vapor novamente, havia uma grande
multidão em Bolsão; não convidada, mas não inesperada. Frodo
estava esperando no degrau, sorrindo, mas com
uma aparência bastante cansada e preocupada.
Deu boas-vindas a todos os visitantes, mas não
tinha muito mais para dizer além do que já tinha
dito antes. Sua resposta a todas as indagações
era simplesmente: O Sr. Bilbo Bolseiro foi embora;
pelo que sei, para sempre. Alguns visitantes
ele convidou para entrar, pois Bilbo tinha deixado
mensagens para eles. Dentro
do corredor estava empilhada uma grande variedade
de pacotes e embrulhos e pequenas peças de mobília.
Em cada item havia uma etiqueta. Havia várias
etiquetas deste tipo: Para
Adelard Tûk, e SOMENTE PARA ELE, de Bilbo;
em um guarda-chuva. Adelard tinha dado cabo
de muitos guarda-chuvas não etiquetados. Para
DORA BOLSEIRO em memória de uma LONGA correspondência,
com amor, de Bilbo; num grande cesto de lixo. Dora era a irmã de Drogo e a mulher
mais velha entre os parentes vivos de Bilbo
e Frodo; tinha noventa e nove anos e escrevera
resmas de bons conselhos durante mais de meio
século. Para
MILO COVAS, esperando que seja de utilidade,
de B.B.; numa caneta de ouro e um vidro de tinta. Milo nunca respondia
cartas. Para
o uso de ANGÉLICA, do tio Bilbo;
num espelho redondo e convexo. Ela era uma jovem
Bolseiro, e obviamente considerava seu rosto
bem-proporcionado. Para
a coleção de HUGO JUSTA-CORREIA, de um doador;
numa estante (vazia). Hugo era ótimo para pedir
livros emprestados, e péssimo para devolvê-los. Para
LOBÉLIA SACOLA-BOLSEIRO, como um PRESENTE;
num estojo de colheres de prata. Bilbo achava
que ela se apropriara de grande quantidade de
suas colheres enquanto ele estava longe, na
primeira viagem. Lobélia sabia muito bem disso.
Quando chegou mais tarde naquele dia, pegou
a idéia imediatamente, mas também pegou as colheres. Essa
é apenas uma pequena seleção dos presentes.
A residência de Bilbo ficara realmente entulhada
de coisas no curso de sua longa existência.
Era uma tendência das tocas de hobbits ficarem
entulhadas: pela qual o costume de distribuir
tantos presentes de aniversário foi grandemente
responsável. Não que, é claro, os presentes
de aniversários fossem sempre novos;
havia um ou outro velho mathom
de utilidade esquecida que tinha circulado por
todo o distrito; mas Bilbo geralmente dava presentes
novos, e guardava os que recebia. A velha toca
estava sendo agora um pouco desentulhada. Cada
um dos vários presentes de despedida tinha uma
etiqueta, escrita pessoalmente por Bilbo, e
muitos tinham alguma finalidade especial ou
alguma brincadeira. Mas é claro que a maioria
das coisas foi dada para pessoas que as desejavam
e as receberiam bem. Os hobbits mais pobres,
e especialmente aqueles da Rua do Bolsinho,
se saíram muito bem. O velho Feitor Gamgi ficou
com dois sacos de batatas, uma pá nova, um colete
de lã e uma garrafa de ungüento para as juntas
enferrujadas. O velho Rory Brandebuque, em recompensa
por sua grande hospitalidade, ficou com uma
dúzia de garrafas de Velhos Vinhedos: um vinho
tinto forte que vinha da Quarta Sul, e agora
já maduro, pois tinha sido guardado pelo pai
de Bilbo. Rory desculpou Bilbo, e depois da
primeira garrafa jurou que ele era um bom camarada. Uma
grande quantidade de tudo ficou para Frodo.
E, é claro, todos os tesouros mais importantes,
bem como os livros, quadros, e mobília mais
que suficiente. Tudo isso foi deixado para ele.
Não houve, entretanto, qualquer sinal ou menção
a dinheiro ou jóias: nem um trocado ou uma conta
de vidro foram doados. Frodo
teve uma tarde bastante penosa. Um falso rumor
de que todos os pertences
da casa estavam sendo distribuídos gratuitamente
se espalhou como fogo selvagem, e logo
o lugar estava atulhado de pessoas que não tinham
nada a fazer lá, mas que não podiam ser impedidas
de entrar. As etiquetas se rasgaram e foram
misturadas, e surgiram brigas. Algumas pessoas
tentaram permutas e negociatas no corredor;
e outros tentaram fugir com itens menores que
não eram destinados a eles, ou com qualquer
outra coisa que aparentemente ninguém quisesse
ou protegesse. A estrada que dava para o portão
ficou lotada de carrinhos de mão e carriolas. No
meio da confusão chegaram os Sacola-bolseiros.
Frodo tinha se recolhido por uns momentos e
havia deixado seu amigo Merry Brandebuque de
olho nas coisas. Quando Otho pediu para ver
Frodo, Merry se inclinou educadamente. Ele
está indisposto disse ele. Está descansando.
Você quer dizer escondido disse Lobélia. De
qualquer modo queremos vê-lo. Vá agora e diga
isso a ele! Merry
os deixou esperando longamente no corredor,
e eles tiveram tempo para descobrir seu presente
de despedida, que era o conjunto de colheres.
Isto não melhorou os ânimos. Finalmente foram
conduzidos até o escritório. Frodo estava sentado
à mesa com um monte de papéis em sua frente.
Parecia indisposto pelo menos para encontrar-se
com os Sacola-bolseiros e se levantou, bulindo
com alguma coisa que estava em seu bolso. Mas
conversou com eles de modo educado. Os
Sacola-bolseiros foram bastante agressivos.
Começaram oferecendo preços de barganha (como
se fosse entre amigos) por várias coisas valiosas
e sem etiquetas. Quando Frodo respondeu que
apenas as coisas especialmente endereçadas por
Bilbo estavam sendo doadas, disseram que tudo
era suspeito.
Somente uma coisa está clara para mim disse
Otho. Que você está se saindo muito bem nessa
história. Insisto em ver o testamento. Otho
teria sido herdeiro de Bilbo, se não fosse pela
adoção de Frodo. Ele leu o testamento com muito
cuidado e bufou. Estava tudo, infelizmente,
muito claro e correto (de acordo com os costumes
legais dos hobbits que exigem, entre outras
coisas, sete assinaturas de testemunhas em tinta
vermelha). Derrotados
novamente disse ele à sua mulher. Depois de
esperar sessenta
anos. Colheres? Ninharia! Fez um gesto de desprezo
e saiu queimando o chão. Mas não foi tão fácil
se livrar de Lobélia. Um pouco mais tarde, Frodo
saiu do escritório para ver como as coisas estavam
indo e ainda a encontrou por ali, investigando
cantos e frestas e dando tapas no assoalho.
Ele a conduziu com firmeza até a saída, depois
de a ter livrado de vários artigos pequenos
(mas bastante valiosos) que tinham de algum
modo caído dentro de seu guarda-chuva. A julgar
pelo rosto, parecia que ela estava tendo espasmos
de tanto pensar numa resposta realmente contundente;
mas tudo o que conseguiu encontrar para dizer,
virando-se no degrau, foi:
Você viverá para se arrepender disso, rapaz!
Por que você também não foi? Você não faz parte
deste lugar; você não é um Bolseiro você , você
é um Brandebuque!
Você ouviu isso, Merry? Isso foi um insulto,
eu acho disse Frodo fechando a porta na cara
dela.
Foi um elogio disse Merry Brandebuque. Mas é
claro que o que ela disse não é verdade. Depois
eles deram a volta na toca e expulsaram três
jovens hobbits (dois Boffins e um Bolger) que
estavam fazendo furos nas paredes de uma das
adegas. Frodo também teve uma contenda com o
jovem Sancho Pé-soberbo (neto do velho Odo Pé-soberbo),
que tinha iniciado uma escavação na despensa
maior, onde ele pensou ouvir um eco. A lenda
do ouro de Bilbo excitava tanto a curiosidade
quanto a esperança; pois o ouro lendário (obtido
de modo misterioso, se não positivamente por
meios ilícitos) é, como todos sabem, daquele
que o encontrar a não ser que a busca seja interrompida. Quando
tinha dominado Sancho, colocando-o para fora,
Frodo desabou numa cadeira no salão. Está na
hora de fechar a loja, Merry disse ele. Tranque
a porta e não abra para ninguém hoje, mesmo
que alguém traga um aríete. Depois foi se recompor
com uma já protelada xícara de chá. Mal
tinha se sentado quando ouviu uma batida leve
na porta da frente. Lobélia de novo, com toda
certeza, pensou ele. Deve ter pensado em algo
realmente desagradável, e voltou para dizê-lo.
Ela pode esperar. Continuou
tomando seu chá. A batida se repetiu, bem mais
alto, mas ele não tomou conhecimento. De repente
a cabeça do mago apareceu na janela.
Se não me deixar entrar, Frodo, eu arranco essa
porta e jogo lá embaixo disse ele.
Meu querido Gandalf! Um minutinho! gritou Frodo,
correndo até a porta. Entre! Entre! Pensei que
fosse Lobélia.
Então eu perdôo você. Mas eu a vi agora há pouco
numa charrete em direção a Beirágua, com uma
cara de azedar leite fresco.
Ela já tinha quase me azedado. Honestamente,
eu quase experimentei o anel de Bilbo. Queria
sumir.
Não faça isso disse Gandalf, sentando-se. Tome
cuidado com esse anel, Frodo! Na verdade, foi
em parte por isso que eu vim para dizer uma
única palavra.
Sobre o quê?
O que você já sabe?
Só sei o que Bilbo me disse. Ouvi a história
dele: como o encontrou e como o usou: quero
dizer, na sua viagem.
Eu me pergunto qual história.
Não aquela que ele contou para os anões e colocou
em seu livro disse Frodo. Ele me contou a história
verdadeira depois que eu vim morar aqui. Disse
que você o importunou até que contasse a verdade,
e por isso era melhor que eu soubesse também.
Sem segredos entre você e mim, Frodo, disse
ele; mas isso deve ficar entre nós. O anel é
meu, de qualquer forma.
Interessante! disse Gandalf. E o que você achou
de tudo isso?
Se você quer dizer sobre a invenção de ter ganhado
um presente, bem, achei que a história real
era muito mais provável, e não entendi o motivo
da alteração. Não é muito do feitio de Bilbo
fazer isso, e eu achei muito estranho.
Eu também. Mas coisas estranhas podem acontecer
com pessoas que possuem esse tipo de tesouro
se elas o usarem. Que isso fique como um aviso
para você, para que tome muito cuidado com ele.
Esse anel pode ter mais poderes do que simplesmente
fazer você desaparecer quando desejar.
Não entendo disse Frodo.
Eu também não respondeu o mago. Simplesmente
comecei a pensar no anel, especialmente depois
da noite passada. Não é preciso se preocupar.
Mas se você seguir meu conselho, vai usá-lo
muito raramente, ou nem irá usá-lo. Pelo menos
eu peço que você não o use de qualquer maneira
que possa causar comentários ou levantar suspeitas.
Digo de novo: guarde-o a salvo, e em segredo!
Você é muito misterioso. Está com medo de quê?
Não tenho certeza, por isso não vou dizer mais
nada. Pode ser que eu tenha alguma coisa para
dizer quando voltar. Vou partir imediatamente:
então é adeus por enquanto. Ele se levantou.
Imediatamente?! gritou Frodo. Achei que você
ia ficar no mínimo por mais uma semana. Estava
ansioso por sua ajuda.
Eu realmente queria ajudar você, mas tive de
mudar meus planos. Posso ficar longe por um
bom tempo, mas volto para ver você de novo assim
que puder. Quando você menos esperar, eu vou
aparecer! Chegarei em silêncio. Eu não devo
mais visitar o Condado abertamente com freqüência.
Acho que me tornei muito impopular. Dizem que
sou um incômodo e que perturbo a paz. Algumas
pessoas estão me acusando de realmente ter feito
Bilbo desaparecer, ou coisa pior. Se você quer
saber, estão dizendo que existe um plano armado
por nós dois para tomar posse da riqueza dele.
Algumas pessoas! exclamou Frodo. Você quer dizer
Otho e Lobélia. Que abominável! Eu lhes daria
Bolsão e todo o resto, se pudesse ter Bilbo
de volta e ir com ele vagueando pelos campos.
Eu amo o Condado. Mas de alguma forma começo
a sentir que gostaria de ter ido embora também.
Fico pensando se poderei vê-lo novamente. Frodo
o acompanhou até a porta. Ele acenou pela última
vez e começou a andar num passo surpreendente;
mas Frodo achou que o velho mago parecia mais
curvado que o normal, quase como se estivesse
carregando um grande peso. A noite estava chegando,
e o seu vulto com a capa rapidamente desapareceu
no crepúsculo. Frodo não o viu novamente por
um longo tempo.
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UMA
FESTA MUITO ESPERADA Quando
o Sr. Bilbo Bolseiro de Bolsão anunciou que
em breve celebraria seu onzentésimo primeiro
aniversário com uma festa de especial grandeza,
houve muito comentário e agitação na Vila dos
Hobbits. Bilbo
era muito rico e muito peculiar, e tinha sido
a atração do Condado por sessenta anos, desde
seu notável desaparecimento e inesperado retorno.
As riquezas trazidas de suas viagens tinham
agora se transformado numa lenda local, e popularmente
se acreditava que a Colina em Bolsão estava
cheia de túneis recheados com tesouros. E se
isso não fosse o suficiente para se ter fama,
havia também seu vigor prolongado que maravilhava
as pessoas.
O tempo passava, mas parecia ter pouco efeito
sobre o Sr. Bolseiro. Aos noventa anos,
parecia ter cinqüenta. Aos noventa e nove, começaram
a chamá-lo de bem-conservado; mas inalterado ficaria mais próximo da realidade. Havia pessoas que balançavam
a cabeça e pensavam que isso era bom demais;
parecia injusto que qualquer pessoa possuísse
(aparentemente) a juventude perpétua, além de
(supostamente) uma riqueza inexaurível.
Isso terá seu preço diziam eles. Não é natural
e trará problemas. Mas
até agora os problemas não haviam chegado, e
como o Sr. Bolseiro era generoso com seu dinheiro,
a maioria das pessoas estava disposta a perdoar
suas esquisitices e sua boa sorte. Continuou
se relacionando em termos de cortesia com sua
família (com exceção, é claro, dos Sacola-bolseiros),
e tinha muitos admiradores devotados entre os
hobbits de famílias pobres e sem importância.
Mas não tinha amigos íntimos, até que seus primos
mais jovens começaram a crescer. O
mais velho deles, e favorito de Bilbo, era o
jovem Frodo Bolseiro. Quando Bilbo tinha noventa
e nove anos, adotou Frodo como seu herdeiro,
e o trouxe para viver em Bolsão, e os Sacola-bolseiros
finalmente perderam as esperanças. Por acaso,
Bilbo e Frodo faziam aniversário no mesmo dia,
22 de setembro. – Seria melhor que você viesse
morar aqui, Frodo, meu rapaz! – disse Bilbo
um dia –, e então poderemos comemorar nossos
aniversários juntos e com mais conforto. Nessa
época Frodo ainda estava na vintolescência, que é como os hobbits chamavam
os anos irresponsáveis entre a infância e a
maioridade aos trinta e três anos. Mais
doze anos se passaram. Todo ano os Bolseiros
davam animadas festas duplas de aniversário
em Bolsão; mas agora se entendia que alguma
coisa muito excepcional estava sendo planejada
para aquele outono. Bilbo ia fazer onzenta
e um anos, 111, um número bastante curioso,
e uma idade muito respeitável para um hobbit
(mesmo o Velho Tûk só havia chegado aos 130);
e Frodo ia fazer trinta e três, 33, um número importante:
o ano em que se tornaria um adulto. As
línguas começaram a se agitar na Vila dos Hobbits
e em Beirágua, e rumores do evento que se aproximava
viajaram por todo o Condado. A história e a
personalidade do Sr. Bilbo Bolseiro se tornaram
novamente o assunto principal das conversas,
e as pessoas mais velhas repentinamente encontraram
grande receptividade para suas lembranças. Ninguém
tinha uma platéia mais atenta que o velho Ham
Gamgi, geralmente conhecido como Feitor. Ele
contava histórias no Ramo de Hera, uma pequena hospedaria na
estrada de Beirágua, e falava com certa autoridade,
pois tinha cuidado do jardim de Bolsão por quarenta
anos, e tinha ajudado o velho Holman no mesmo
serviço antes disso. Agora que ele estava ficando
velho e com as juntas endurecidas, o serviço
era feito principalmente por seu filho Sam Gamgi.
Tanto pai quanto filho tinham relações muito
boas com Bilbo e Frodo. Moravam na própria Colina,
no número 3 da rua do Bolsinho, logo abaixo
de Bolsão. –
O Sr. Bilbo é um hobbit muito cavalheiro e gentil,
como eu sempre disse – declarava o Feitor. E
dizia a mais perfeita verdade: Bilbo era gentil
com ele, chamando-o de Mestre Hamfast, e constantemente
o consultava sobre o cultivo de legumes – em
se tratando de “raízes”, especialmente batatas,
o Feitor era considerado por todos na vizinhança
(inclusive ele próprio) a autoridade mais importante.
–
Mas e esse Frodo que mora com ele? – perguntou
o Velho Noques de Beirágua. – O seu nome é Bolseiro,
mas ele tem muito dos Brandebuques, pelo que
dizem. Eu não entendo o motivo pelo qual um
Bolseiro da Vila dos Hobbits vai procurar uma
esposa lá na Terra dos Buques, onde as pessoas
são tão estranhas. –
Não é de admirar que sejam estranhas – acrescentava
Papai Doispé (o vizinho de lado do Feitor) –,
pois eles moram do lado errado do rio Brandevin
e bem perto da Floresta Velha. Aquele é um lugar
escuro e ruim, se metade das histórias for verdade. –
Você está certo, Pa! – disse o Feitor. – Não
é que os Brandebuques da Terra dos Buques morem
na Floresta Velha; mas eles são uma raça estranha, ao que parece.
Vivem para cima e para baixo de barco naquele
rio grande – e isso não é natural. Não é de
espantar que surjam problemas. Mas, seja como
for, o Sr. Frodo é um jovem hobbit tão gentil
quanto se poderia desejar. Exatamente como o
Sr. Bolseiro. Afinal de contas, seu pai era
um Bolseiro. Um hobbit decente e respeitável,
o Sr. Drogo Bolseiro; nunca houve o que dizer
dele, até que morreu afogado. –
Afogado? – disseram várias vozes. Já tinham
ouvido este e outros rumores mais sombrios antes,
é claro; mas os hobbits têm uma paixão por histórias
familiares e estavam prontos para ouvir esta
de novo. –
Bem, é o que dizem – disse o Feitor. – Veja
você: o Sr. Drogo se casou com a pobre Sra.
Prímula Brandebuque. Ela era prima em primeiro
grau do nosso Sr. Bilbo por parte de mãe (a
mãe dela era a filha mais jovem do Velho Tûk);
e o Sr. Drogo era primo dele em segundo grau.
Desse modo, o Sr. Frodo é filho dos primos do
Sr. Bilbo em primeiro e segundo grau, e seu primo com o intervalo
de uma geração, você me entende? E o Sr. Drogo
morava na Sede do Brandevin com o sogro, o velho
Mestre Gorbadoc, como sempre fez depois de seu
casamento (tinha um fraco por comida e o Velho
Gorbadoc mantinha uma mesa bastante generosa);
e saíram para andar
de barco no rio Brandevin, e ele e sua esposa
morreram afogados; e o pobre Sr. Frodo era apenas
uma criança na época. –
Ouvi dizer que eles foram para a água depois
do jantar e sob o luar – disse o Velho Noques
–; e que foi o peso de Drogo que afundou o barco. –
E eu
ouvi que ela o empurrou, e ele a puxou para
dentro da água depois que ele tinha caído –
disse Ruivão, o moleiro da Vila dos Hobbits. –
Você não deveria dar ouvidos a tudo o que falam,
Ruivão – disse o Feitor, que não gostava muito
do moleiro. – Não tem sentido ficar falando
sobre empurrar e puxar. Os barcos são muito
traiçoeiros até para aqueles que se sentam quietinhos
sem procurar problemas. De qualquer jeito: foi
assim que o Sr. Frodo se tornou um órfão e ficou
perdido, como se pode dizer, em meio àquele
estranho povo da Terra dos Buques e foi criado
na Sede do Brandevin. Aquilo geralmente já é
um formigueiro de tão cheio. O velho Mestre
Gorbadoc nunca teve menos do que duzentos parentes
nas redondezas. O Sr. Bilbo não poderia ter
feito coisa melhor do que trazer o menino para
morar entre gente decente. –
Mas acho que esse foi um golpe duro para aqueles
Sacola-bolseiros. Eles acharam que iam ficar
com Bolsão na época em que ele foi embora e
foi considerado morto. E então ele volta e os
manda sair, e continua vivendo e vivendo, e
nem parecendo um dia mais velho, puxa vida!
E de repente arranja um herdeiro, e arruma toda
a documentação necessária. Os Sacola-bolseiros
nunca vão entrar em Bolsão depois disso, ou
pelo menos se espera que não. –
Tem um monte de dinheiro enfiado lá dentro,
ouvi dizer – disse um estranho, um visitante
que estava a negócios vindo de Grã Cava, na
Quarta Oeste. – Todo o topo de vossa colina
está cheio de túneis recheados de baús de ouro
e prata, e jóias, pelo que ouvi dizer. –
Então você ouviu mais do que eu posso discutir
– respondeu o Feitor. – Não sei de nada sobre
jóias. O Sr. Bilbo não faz muita economia com seu dinheiro, e parece
que não há falta dele; mas não sei nada sobre
túneis. Vi o Sr. Bilbo quando voltou, mais ou
menos sessenta anos atrás, quando eu era um
menino. Não fazia muito tempo que eu era um
aprendiz do velho Holman (ele era primo do meu
pai), mas mesmo assim me pediu que fosse a Bolsão
para ajudá-lo a evitar que as pessoas pisoteassem
a grama e ficassem andando pelo jardim quando
a toca estava à venda. E em meio a tudo isso
o Sr. Bilbo vem subindo a colina com um pônei,
alguns sacos bem grandes e uns baús. Não duvido
que estivessem em sua maioria cheios de tesouros
que ele apanhou em lugares distantes, onde há
montanhas de ouro, dizem por aí; mas não havia
o bastante para encher túneis. Mas o meu menino
Sam deve saber mais sobre isso. Ele vive entrando
e saindo de Bolsão. É louco por histórias de
antigamente, isso ele é, e escuta todas as histórias
do Sr. Bilbo. O Sr. Bilbo ensinou-lhe suas letras
– sem querer causar maldade, veja bem, e espero
que nenhuma maldade venha disso. –
Elfos
e Dragões!, digo eu pra ele. Repolho
com batatas é melhor para você e para mim. Não
vá se misturar com os negócios que não são para
o seu bico, ou você vai arranjar problemas muito
grandes para você, digo eu pra ele. E posso
dizer para outros – acrescentou ele, olhando
para o estranho e para o moleiro. Mas
o Feitor não convenceu sua platéia. A lenda
sobre a riqueza de Bilbo estava fixada de maneira
muito firme nas mentes das gerações mais jovens
de hobbits. –
Ah! mas ele pode muito bem ter juntado mais
ao que trouxe no início – argumentou o moleiro,
representando a opinião geral. – Ele está sempre
longe de casa. E reparem nas pessoas bizarras
que vêm visitá-lo: anões que chegam à noite,
e aquele velho mágico andarilho, Gandalf, e
todo o resto. Você pode dizer o que quiser,
Feitor, mas Bolsão é um lugar estranho, e as
pessoas de lá são mais estranhas ainda. –
Você pode dizer o que quiser sobre coisas que
não conhece melhor do que a história do barco,
senhor Ruivão – retorquiu o Feitor, apreciando
ainda menos o moleiro do que de costume. – Se
isso é ser estranho, então poderíamos ter mais
estranheza por aqui. Tem gente não muito longe
daqui que não ofereceria uma caneca de cerveja
a um amigo, nem se vivesse numa toca
com paredes de ouro. Mas em Bolsão eles fazem
as coisas direito. O nosso Sam disse
que todo mundo vai ser convidado para a festa,
e vai haver presentes, vejam bem, presentes
para todos – neste mesmo mês. Aquele
mesmo mês era setembro, e estava agradável como
se poderia desejar. Um ou dois dias depois se
espalhou um rumor (provavelmente começado pelo
informado Sam) de que iria haver fogos de artifício
– fogos de artifício, além do mais, como não
se via no Condado há mais de um século; na verdade,
desde que o Velho Tûk havia morrido. Os
dias se passaram e O Dia se aproximava. Uma
carroça de aparência estranha, carregada de
pacotes de aparência estranha, rodou numa noite
até a Vila dos Hobbits e foi subindo a Colina
até chegar a Bolsão. Os hobbits assustados espiavam
de portas iluminadas com lamparinas para ver,
embasbacados. Era conduzida por pessoas bizarras,
que cantavam canções estranhas: anões com barbas
longas e capuzes fundos. Alguns deles ficaram
em Bolsão. No final da segunda semana de setembro
uma charrete passou por Beirágua vinda da Ponte
do Brandevin em plena luz do dia. Um homem a
conduzia, sozinho. Usava um chapéu azul, alto
e pontudo, uma longa capa cinza e um cachecol
prateado. Tinha uma longa barba branca e sobrancelhas
densas que sobressaíam da borda de seu chapéu.
Crianças hobbit seguiram a charrete pelas ruas
da Vila dos Hobbits e colina acima. Era um carregamento
de fogos de artifício, como eles muito bem adivinharam.
Na porta da frente de Bilbo, o homem começou
a descarregar: havia grandes pacotes de fogos
de artifício de todos os tipos e formatos, cada
um rotulado com um G grande e vermelho com a
runa élfica. Essa
era a marca de Gandalf, é claro, e o velho era
Gandalf, o Mago, cuja fama no Condado se devia
principalmente ao seu talento com fogos, fumaça
e luzes. Seu ofício real era muito mais difícil
e perigoso, mas o pessoal do Condado não sabia
nada sobre isso. Para eles, ele era apenas uma
das “atrações”
da Festa. Por isso a excitação das crianças
hobbit. “G de Grande”, gritavam elas,
e o velho sorria. Conheciam-no de vista, embora
ele aparecesse na Vila dos Hobbits de vez em
quando e nunca ficasse por muito tempo. Mas
nem eles, nem os mais velhos dentre os velhos
tinham visto uma de suas exibições de fogos
de artifício – elas agora pertenciam a um passado
lendário. Quando
o velho, ajudado por Bilbo e alguns anões, terminou
de descarregar, Bilbo distribuiu uns trocados;
mas não houve nem um buscapé ou bombinha, para
a decepção dos observadores. –
Saiam agora! – disse Gandalf. – Vocês vão ver
bastante quando a hora chegar. – Depois desapareceu
para dentro com Bilbo, e a porta foi fechada.
Os jovens hobbits ficaram olhando em vão para
a porta por um tempo, e então foram embora,
sentindo que o dia da festa nunca chegaria. Dentro
de Bolsão, Bilbo e Gandalf estavam sentados
perto da janela aberta de uma pequena sala que
dava para o oeste, sobre o jardim. O fim de
tarde estava claro e quieto. As flores brilhavam,
vermelhas e douradas: bocas-de-leão e girassóis
e nastúrcios que subiam pelas paredes verdes
e espiavam pelas janelas redondas. –
Como o seu jardim está bonito! – disse Gandalf. –
É – disse Bilbo. – Eu gosto muito dele, e de
todo o velho e querido Condado, mas acho que
preciso de férias. –
Quer dizer então que você pretende continuar
com seu plano? –
Pretendo. Tomei a decisão há alguns meses, e
não mudei de idéia. –
Muito bem. É melhor não dizer mais nada. Continue
com seu plano – seu plano completo, veja bem
– e espero que tudo saia da melhor maneira possível,
para você e para todos nós. –
Espero que sim. De qualquer forma, quero me
divertir na quinta-feira, e fazer minha brincadeirinha. –
Me pergunto quem vai rir... – disse Gandalf,
balançando a cabeça. –
Veremos – disse Bilbo. No
dia seguinte, charretes e mais charretes subiram
a Colina. Pode ter havido alguma reclamação
sobre “negócios locais”, mas nessa mesma semana
Bolsão começou a desovar encomendas de todo
tipo de provisão, mercadoria ou artigo de luxo
que se pudesse conseguir na Vila dos Hobbits
ou em Beirágua, ou em qualquer outro lugar nas
redondezas. As pessoas ficaram entusiasmadas
e começaram a marcar os dias no calendário,
e vigiavam o carteiro com ansiedade, esperando
convites. Em
breve os convites começaram a se espalhar, e
o correio da Vila dos Hobbits ficou entupido,
e choveram cartas no correio de Beirágua, e
carteiros auxiliares voluntários foram requisitados.
Em fluxo constante subiam a Colina, carregando
centenas de variações polidas de Agradeço o convite e confirmo minha presença. Um
aviso apareceu no portão de Bolsão: ÉPROIBIDA
A ENTRADA DE PESSOAS QUE NÃO VENHAM TRATAR DOS
PREPARATIVOS DA FESTA. Mesmo a entrada daqueles que estavam,
ou fingiam estar, tratando dos preparativos
da festa era raramente permitida. Bilbo estava
ocupado: escrevendo convites, checando respostas,
embrulhando presentes e fazendo alguns preparativos
particulares. Desde a chegada de Gandalf ele
havia sumido de vista. Um
dia de manhã os hobbits acordaram e viram o
grande campo, ao sul da porta de frente de Bilbo,
cheio de cordas e paus para barracas e pavilhões.
Uma entrada especial foi aberta na ladeira que
levava até a estrada, e degraus largos e um
grande portão branco foram construídos ali.
As três famílias hobbit da rua do Bolsinho,
vizinha ao campo, ficaram extremamente interessadas
e em geral sentiram inveja. O velho Feitor Gamgi
até parou de fingir que trabalhava em seu jardim. As
barracas começaram a ser levantadas. Havia um
pavilhão especialmente grande, tão grande que
a árvore que crescia no campo cabia direitinho
dentro dele, e se erguia altaneira próxima a
um canto, na cabeceira da mesa principal. Lanternas
foram penduradas em todos os seus galhos. Mais
promissor ainda (para as mentes dos hobbits):
uma enorme cozinha a céu aberto foi construída
no canto norte do campo. Um batalhão de cozinheiros,
de todas as hospedarias e restaurantes num raio
de milhas, chegou para ajudar os anões e outras
pessoas estranhas que estavam aquarteladas em
Bolsão. A agitação chegou ao máximo. Então
o céu ficou cheio de nuvens. Foi na quarta-feira,
véspera da Festa. A ansiedade era grande. A
quinta-feira, 22 de setembro, finalmente chegou.
O sol se levantou, as nuvens desapareceram,
bandeiras foram desfraldadas e a diversão começou. Bilbo
Bolseiro chamava aquilo de festa, mas na verdade era uma variedade de entretenimentos reunidos num só. Praticamente
todos os que moravam ali por perto foram convidados.
Muito poucos foram esquecidos por acidente,
mas, como vieram de qualquer jeito, não se importaram.
Muitas pessoas de outras partes do Condado também
foram convidadas; e houve até algumas que vieram
de regiões fora dos limites. Bilbo recebeu em
pessoa os convidados (e agregados) no novo portão
branco. Distribuiu presentes para todos e mais
alguns – estes eram aqueles que saíam por uma
porta lateral e entravam de novo pelo portão.
Os hobbits dão presentes para outras pessoas
em seus aniversários. Em geral não muito caros,
e não tão generosos como nesta ocasião; mas
esse sistema não era ruim. Na verdade, na Vila
dos Hobbits e em Beirágua quase todos os dias
alguém fazia aniversário, de modo que todos
os hobbits tinham uma grande chance de ganhar
no mínimo um presente, pelo menos uma vez por
semana. Mas nunca se cansavam de presentes. Nessa
ocasião, os presentes foram inusitadamente bons.
As crianças hobbit estavam tão excitadas que
por um tempo quase se esqueceram de comer. Havia
brinquedos que eles nunca tinham visto antes,
todos lindos e alguns obviamente mágicos. Muitos
deles, na verdade, encomendados um ano antes,
tinham percorrido todo o caminho vindo da Montanha
e de Valle, e eram produtos genuínos feitos
por anões. Quando
todos os convidados tinham recebido as boas-vindas
e estavam finalmente do lado de dentro, houve
canções, danças, música, jogos e, é claro, comida
e bebida. Houve três refeições oficiais: almoço,
chá e jantar (ou ceia). Mas o almoço e o chá
foram marcados pelo fato de que nesses momentos
todos estavam sentados e comendo juntos. Em
outros momentos havia simplesmente montes de
pessoas comendo e bebendo – continuamente, das
onze até as seis e meia, quando os fogos de
artifício começaram. Os
fogos eram de Gandalf: não foram apenas trazidos
por ele, mas projetados e fabricados por ele;
e os efeitos especiais, cenários e foguetes
era ele quem controlava. Mas também houve farta
distribuição de buscapés, bombinhas, fósforos
coloridos, tochas, velas-de-anões, fontes-élficas,
fogos-de-orcs e rojões. Era tudo soberbo. A
arte de Gandalf havia se aperfeiçoado com o
passar dos anos. Havia
foguetes imitando o vôo de pássaros cintilantes
cantando com vozes doces. Havia árvores verdes
com troncos de fumaça escura: suas folhas se
abriam como uma primavera inteira que florescesse
num segundo, e seus ramos brilhantes derrubavam
flores de luz sobre os hobbits atônitos, desaparecendo
com um cheiro doce um pouco antes que pudessem
tocar seus rostos voltados para o céu. Havia
montes de borboletas que voavam por entre as
árvores; havia pilares de fogos coloridos que
subiam e se transformavam em águias, em caravelas,
ou numa falange de cisnes voadores; havia uma
tempestade vermelha e uma chuva de gotas amarelas;
houve uma floresta de lanças de prata que surgiram
repentinamente no céu com um grito como um exército
em batalha, e caíram no Água com um chiado como
uma centena de cobras incandescentes. E houve
também uma última surpresa em homenagem a Bilbo,
que assustou os hobbits além da conta, como
era a intenção de Gandalf. As luzes se apagaram.
Uma grande fumaça subiu. Tomou a forma de uma
montanha vista à distância, e começou a brilhar
no topo. Soltava chamas verdes e vermelhas.
Lá de dentro saiu um dragão de um vermelho dourado
– não do tamanho de um dragão real, mas terrivelmente
parecido com um dragão real: saía fogo de suas
mandíbulas e os olhos penetrantes olhavam para
baixo; houve um rugido, e por três vezes ele
zuniu sobre as cabeças da multidão. Todos se
inclinaram e muitos caíram de cara no chão.
O dragão passou como um trem expresso, virou
uma cambalhota, e explodiu sobre Beirágua com
um estrondo ensurdecedor. –
Este é o sinal para a ceia! – disse Bilbo. O
sofrimento e o medo desapareceram imediatamente,
e os hobbits prostrados se levantaram num segundo.
Havia uma ceia esplêndida para todos; para todos,
quer dizer, com a exceção daqueles convidados
para o jantar especial em família. Este aconteceu
no grande pavilhão onde estava a árvore. Os
convites foram limitados a doze dúzias (um número
também chamado de uma Grosa, embora a palavra
fosse considerada inadequada para se referir
a pessoas); e os convidados foram selecionados
de todas as famílias com as quais Bilbo e Frodo
tinham parentesco, havendo mais uns poucos amigos
que não eram parentes (como Gandalf). Muitos
hobbits jovens foram incluídos, e estavam presentes
com a permissão dos pais; pois os hobbits eram
liberais com suas crianças em se tratando de
ficar acordado até tarde, especialmente quando
havia uma chance de conseguir para elas uma
refeição de graça. Criar hobbits era muito dispendioso. Havia
muitos Bolseiros e Boffins, e também muitos
Tûks e Brandebuques; havia vários Fossadores
(parentes da avó de Bilbo Bolseiro), e vários
Roliços (relacionados ao seu avô Tûk) e uma
seleção de Covas, Bolgers, Justa-correias, Texugos,
Boncorpos, Corneteiros e Pé-soberbos. Alguns
desses tinham
apenas uma ligação distante com Bilbo, e outros
raramente tinham visitado a Vila dos
Hobbits antes, pois moravam em cantos remotos
do Condado. Os Sacola-bolseiros não foram esquecidos.
Otho e sua esposa Lobélia estavam presentes.
Não gostavam de Bilbo e detestavam Frodo, mas
o convite era tão magnífico, escrito em tinta
dourada, que eles acharam impossível recusar.
Além disso, Bilbo, seu primo, viera se especializando
em comida por muitos anos, e sua mesa gozava
de alta reputação. Todos
os cento e quarenta e quatro convidados esperavam
por um banquete agradável, embora estivessem
com um certo medo do discurso pós-ceia de seu
anfitrião (um quesito inevitável). Era provável
que ele inoportunamente começasse a recitar
trechos do que chamava de poesia e quem sabe,
depois de um ou dois copos, pudesse aludir às
absurdas aventuras de sua misteriosa viagem.
Os hóspedes não ficaram decepcionados: tiveram
um banquete muito agradável, na verdade um entretenimento
interessante: lauto, abundante, variado e prolongado.
As compras de provisões caíram quase a zero
em todo o distrito nas semanas seguintes; mas
como as provisões de Bilbo exauriram os estoques
das lojas, adegas e armazéns num raio de várias
milhas, isso não teve muita importância. Depois
do banquete (mais ou menos) veio o Discurso.
A maioria dos convidados estava, entretanto,
numa disposição tolerante, e naquele estágio
delicioso que eles chamavam de “encher os cantos”.
Estavam bebendo suas bebidas favoritas, e mordiscando
suas iguarias preferidas, e seus receios foram
esquecidos. Estavam preparados para ouvir qualquer
coisa, e aplaudir a cada ponto final. Queridos
convidados,
começou Bilbo, levantando de sua cadeira. “Escutem!
Escutem! Escutem!” – gritaram eles, e continuaram
repetindo isso em coro, parecendo relutantes
em seguir seu próprio conselho. Bilbo saiu de
seu lugar e subiu numa cadeira perto da árvore
iluminada. A luz das lanternas caía-lhe sobre
o rosto radiante; os botões dourados brilhavam
sobre o colete bordado. Todos podiam vê-lo em
pé, acenando uma mão no ar, e com a outra no
bolso da calça. Meus
queridos Bolseiros e Boffins,
começou de novo; e
meus queridos Tûks e Brandebuques e Fossadores
e Roliços e Covas e Corneteiros e Bolgers, Justa-correias,
Boncorpos, Texugos e Pé-soberbos. “Pé-soberbos!” – gritou um hobbit velho do fundo do
pavilhão. O seu nome, é claro, era Pé-soberbo.
E merecido: seus pés eram grandes, excepcionalmente
peludos, e ambos estavam sobre a mesa. Pé-soberbos, repetiu Bilbo. E
também meus bons Sacola-bolseiros, a quem finalmente
dou boas-vindas novamente em Bolsão. Hoje é
meu centésimo décimo primeiro aniversário: hoje
chego aos onzenta e um! “Viva! Viva! Que
essa data se repita por muitos anos!” – gritaram
todos, e bateram nas mesas alegremente. Isso
era o tipo de coisa de que eles gostavam. Curto
e óbvio. Espero
que estejam se divertindo tanto quanto eu.
Aplausos ensurdecedores. Gritos de Sim
(e Não).
Ruídos de trombetas e cornetas, apitos e flautas.
Havia, como foi dito, muitos hobbits jovens
presentes. Centenas de estojos musicais tinham
sido distribuídos. A maioria deles levava a
marca VALLE; o que não agradava à maioria dos
hobbits, mas todos eles concordavam que eram
maravilhosos. Continham instrumentos, pequenos,
mas de fabricação perfeita e de tons encantadores.
Na verdade, em um canto alguns dos Tûks e Brandebuques
jovens, supondo que o Tio Bilbo tivesse terminado
(uma vez que já tinha dito tudo o que era necessário),
agora improvisavam uma orquestra, e começavam
a tocar uma toada alegre e dançante. Mestre
Everard Tûk e a Srta. Melilot Brandebuque subiram
numa mesa e com sinos nas mãos começaram a dançar
a Ciranda do Pulo: uma dança bonita, mas bastante
vigorosa. Mas
Bilbo não tinha terminado. Pegando uma corneta
de uma criança ao seu lado, soprou forte três
vezes. O barulho silenciou. Eu
não vou me demorar muito – gritou ele. Aplausos
de toda a platéia. Chamei
todos vocês por um Motivo. Alguma coisa
no jeito como ele disse isso causou uma certa
impressão. Fez-se quase silêncio, e um ou dois
Tûks aguçaram os ouvidos. Na
verdade, por Três Motivos! Primeiramente, para
dizer a vocês que gosto imensamente de todos,
e que onzenta e um anos é um tempo curto demais
para viver entre hobbits tão excelentes e admiráveis. Tremenda explosão de aprovação. Eu
não conheço metade de vocês como gostaria; e
gosto de menos da metade de vocês a metade do
que vocês merecem.
Isso foi inesperado e muito difícil. Houve alguns
aplausos esparsos, mas a maioria deles estava
tentando descobrir se aquilo era um elogio. Em
segundo lugar, para comemorar meu aniversário. Aplausos novamente. Devo dizer
NOSSO aniversário. Pois hoje, é claro, é o aniversário
de meu herdeiro e sobrinho Frodo. Ele se torna
maior de idade e passa a ter acesso à herança
hoje. Alguns aplausos perfunctórios dos
mais velhos; e alguns gritos de “Frodo! Frodo!
Felizardo!” dos mais novos. Os Sacola-bolseiros
franziram a testa e se perguntaram o que ele
queria dizer com “ter acesso à herança”. Juntos perfazemos cento e quarenta e quatro anos. O número
dos convidados foi escolhido para combinar com
esse total notável: Uma Grosa, se me permitem
usar a expressão. Nenhum aplauso. Aquilo era ridículo. Muitos dos convidados,
especialmente os Sacola-bolseiros, sentiram-se
insultados, entendendo que tinham sido convidados
apenas para completar o número necessário, como
mercadorias num pacote. “Uma Grosa! Que expressão
vulgar!” Hoje
também é, se me permitem que me refira à história
antiga, o aniversário de minha chegada de barril
a Esgaroth, no Lago Comprido, embora o fato
de ser meu aniversário tenha escapado de minha
memória na ocasião. Eu tinha apenas cinqüenta
e um anos naquele tempo, e os aniversários não
pareciam tão importantes. O banquete foi esplêndido,
entretanto, embora eu estivesse com uma forte
gripe, posso me lembrar, e pudesse apenas dizer
“buito obrigado”. Agora eu repito a frase mais
corretamente: Muito obrigado por virem à minha
festinha. Silêncio obstinado. Todos sentiram que alguma canção ou
poesia era iminente; e eles estavam ficando
enfarados. Por que não parava de falar e os
deixava beber à sua saúde? Mas Bilbo não cantou
nem recitou. Ele parou por um momento. Em
terceiro lugar e finalmente,
disse ele, quero fazer um COMUNICADO. Disse esta palavra
tão alto e de repente que todo mundo se sentou
ereto na cadeira (os que ainda conseguiam).
Sinto
informá-los de que – embora, como eu disse,
onzenta e um anos seja muito pouco tempo para
passar ao lado de vocês – o FIM chegou. Estou
indo embora. JÁ. ADEUS! Desceu
da cadeira e desapareceu. Houve um clarão de
luz de cegar os olhos e todos os convidados
piscaram. Quando abriram os olhos, Bilbo não
estava em lugar algum. Cento e quarenta e quatro
hobbits pasmos se encostaram nas cadeiras sem
dizer nada. O velho Odo Pé-soberbo retirou seus
pés da mesa e pisou com força no chão. Então
caíram num silêncio mortal até que, depois de
vários suspiros, todos os Bolseiros, Boffins,
Tûks, Brandebuques, Fossadores, Roliços, Covas,
Bolgers, Justa-correias, Texugos, Boncorpos,
Corneteiros e Pé-soberbos começaram a falar
ao mesmo tempo. A
opinião geral era de que a brincadeira tinha
sido de muito mau gosto, e foi necessário trazer
mais comida e bebida para curar os convidados
do choque e do desconforto. “Sempre disse que
ele era louco” foi provavelmente o comentário
mais comum. Mesmo os Tûks (com umas poucas exceções)
acharam o comportamento de Bilbo absurdo. Naquele
momento a maioria deles ficou achando
que o seu desaparecimento não passava de mais
uma traquinagem ridícula. Mas
o velho Rory Brandebuque não tinha certeza.
Nem a idade nem aquele enorme jantar tinham
nublado suas faculdades mentais, e ele disse
à sua nora Esmeralda: – Tem algo suspeito aí,
querida! Acho que o louco do Bolseiro partiu
novamente. Velho bobo. Mas por que nos preocuparmos?
Ele não levou as provisões com ele. – E gritou
para Frodo mandar mais uma rodada de vinho. Frodo
era o único presente que não dizia nada. Por
um tempo ficou sentado em silêncio ao lado da
cadeira vazia de Bilbo e ignorou todos os comentários
e perguntas. Tinha gostado da brincadeira, é
claro, mesmo já estando a par de tudo. Teve
dificuldades para segurar o riso diante da surpresa
indignada dos convidados. Mas ao mesmo tempo
sentia-se numa encrenca: percebeu de repente
que adorava o velho hobbit. A maioria dos convidados
continuou comendo e bebendo e discutindo as
esquisitices de Bilbo Bolseiro, passadas e atuais;
mas os Sacola-bolseiros já tinham ido embora
furiosos. Frodo não queria mais ficar na festa.
Deu ordens para que mais vinho fosse servido;
então se levantou e esvaziou seu próprio copo
em silêncio à saúde de Bilbo e se esgueirou
para fora do pavilhão. Quanto
a Bilbo Bolseiro, mesmo durante o discurso ficara
tateando o anel de ouro em seu bolso: o anel
mágico que guardara em segredo por tantos anos.
Conforme desceu da cadeira, colocou o anel no
dedo e nunca mais foi visto por nenhum hobbit
na Vila dos Hobbits novamente. Foi
rapidamente de volta para sua toca e ficou por
um momento ouvindo com um sorriso os rumores
no pavilhão e os sons de pessoas se divertindo
em outras partes do campo. Depois entrou em
casa. Tirou a roupa de festa, dobrou e embrulhou
em papel crepom seu colete de seda bordado e
o guardou. Aí vestiu rapidamente uns trajes
velhos e desalinhados, e apertou em volta da
cintura um velho cinto de couro. Nele pendurou
uma pequena espada que estava numa bainha de
couro preta e gasta. De uma gaveta trancada,
cheirando a naftalina, retirou uma velha capa
e um capuz. Eles tinham sido guardados ali como
se fossem muito preciosos, mas estavam tão remendados
e manchados que mal se podia adivinhar a cor
original: provavelmente verde-escuro. Eram grandes
demais para ele. Então Bilbo entrou no escritório
e de uma grande caixa-forte tirou um fardo embrulhado
em panos velhos e um manuscrito com capa de
couro; e também um envelope bastante volumoso.
O livro e o fardo ele colocou em um saco pesado
que estava ali, já quase cheio. No envelope
colocou o anel de ouro, e sua fina corrente,
e então o selou e endereçou a Frodo. Primeiro
colocou-o sobre a lareira, mas de repente retirou-o
dali e o enfiou no bolso. Naquele momento a
porta se abriu e Gandalf entrou depressa. –
Alô! – disse Bilbo. – Estava pensando se você
ia aparecer. –
Fico feliz em encontrá-lo visível – respondeu
o mago, sentando-se numa cadeira. – Queria pegar
você aqui ainda e falar umas últimas coisas.
Suponho que você esteja sentindo que tudo saiu
de modo esplêndido e de acordo com seus planos... –
Sim – disse Bilbo. – Embora o clarão tenha sido
uma surpresa: se eu fiquei assustado, imagine
os outros. Um acréscimo seu, suponho. –
Foi. Você guardou sabiamente o anel em segredo
todos esses anos, e me pareceu necessário dar
aos seus convidados alguma coisa a mais que
parecesse explicar o seu súbito desaparecimento. –
E você quase estragou minha brincadeira. Você
é um velho intrometido! – disse Bilbo rindo.
– Mas acho que você é mais esperto, como sempre. –
Eu sou, quando sei das coisas. Mas não tenho
muita certeza sobre essa história toda. Chegamos
ao ponto final. Você fez sua brincadeira, e
alarmou e ofendeu a maioria de seus parentes,
e deu ao Condado assunto para mais nove anos,
ou mais noventa e nove, é mais provável. Você
vai continuar? –
Vou. Sinto que preciso de umas férias, bem longas,
como já disse antes. Provavelmente férias permanentes:
não tenho expectativas de voltar. Na verdade,
não quero voltar, e já fiz todos os preparativos.
Estou velho, Gandalf. Não parece, mas estou
começando a sentir isso no fundo de meu coração.
Bem conservado,
ora bolas! – bufou ele. – Estou me sentindo
todo fino, como se estivesse esticado,
se você sabe do que estou falando: como manteiga
que foi espalhada num pedaço muito grande de
pão. Isso não pode estar certo. Preciso de uma
mudança, ou coisa assim. Gandalf
fitou-o de perto, curioso. – Não, não parece
certo – disse ele sensatamente. – Não, afinal
de contas acho que seu plano é provavelmente
o melhor. –
Bem, de qualquer modo eu já me decidi. Quero
ver montanhas de novo, Gandalf – montanhas;
e depois encontrar algum lugar onde possa descansar.
Em paz e silêncio, sem um monte de parentes
se intrometendo e uma fila de malditos visitantes
na porta. Preciso encontrar um lugar onde possa
terminar meu livro. Pensei num bom final para
ele: e
ele viveu feliz para sempre. Gandalf
riu. – Espero que ele viva. Mas ninguém vai
ler o livro, não importa como seja o final. –
Oh, eles podem ler, nos anos futuros. Frodo
já leu um pedaço, até onde eu escrevi. Você
vai ficar de olho em Frodo, não vai? –
Vou!, com os dois olhos, sempre que eu puder. –
É claro que ele viria comigo se eu pedisse.
Na verdade se ofereceu uma vez, um pouco antes
da festa. Mas não quer realmente, ainda. Eu
quero ver o campo selvagem antes de morrer,
e as Montanhas; mas ele ainda está apaixonado
pelo Condado, com florestas e campos e pequenos
rios. Sente-se confortável aqui. Estou deixando
tudo para ele, é claro, com a exceção de algumas
bagatelas. Espero que seja feliz, quando estiver
acostumado a viver sozinho. Já é tempo de ele
ser dono do próprio nariz. –
Tudo? – perguntou Gandalf. – O anel também?
Você concordou com isso, lembra? –
Bem, sim, acho que sim – gaguejou Bilbo. –
Onde está ele? –
Num envelope, se quer saber – disse Bilbo impacientemente.
– Ali na lareira. Não! Aqui no meu bolso. –
Ele hesitou. – Não é estranho isso, agora? –
disse calmamente para si mesmo. – Afinal de
contas, por que não? Por que ele não deveria
ficar ali? Gandalf
olhou mais uma vez atentamente para Bilbo, e
havia um brilho em seus olhos. – Eu acho, Bilbo
– disse ele baixinho –, que você deveria deixá-lo
para trás. Você não quer? –
Bem, quero – e não quero. Agora que chegou a
hora, não gosto nem um pouco da idéia de me
separar dele. E não vejo por que deveria. Por
que você quer que eu faça isso? – perguntou
ele, e a sua voz se alterou de um modo estranho.
Estava carregada de suspeita e contrariedade.
– Você vive me chantageando com meu anel, mas
nunca me importunou com as outras coisas que
consegui na minha viagem. –
Não, mas eu tinha que chantagear você – disse
Gandalf. – Eu queria a verdade. Era importante.
Anéis mágicos são... bem, são mágicos; e são
raros e curiosos. Eu estava profissionalmente
interessado no seu anel, pode-se dizer, e ainda
estou. Quero saber onde ele está, se você for
embora por aí de novo. Também acho que você
o teve por tempo suficiente. Você não vai mais
precisar dele, Bilbo, a não ser que eu esteja
muito enganado. Bilbo
ficou vermelho, e havia um brilho furioso em
seu olhar. A expressão amigável se fez tensa.
– Por que não? – gritou ele. – E que negócio
é esse de você saber o que eu faço com minhas
próprias coisas? O anel é meu. Eu o achei. Ele
veio até mim. –
Sim, sim – disse Gandalf. – Mas você não precisa
ficar furioso. –
Se estou furioso, a culpa é sua – disse Bilbo.
– Ele é meu, estou dizendo. Meu. Meu precioso.
Sim, meu precioso. O
rosto do mago permaneceu grave e atento, e apenas
uma faísca nos olhos profundos demonstrou que
ele estava assustado e na verdade alarmado.
– Ele já foi chamado assim antes – disse ele.
– Mas não por você. –
Mas eu estou dizendo isso agora. E por que não?
Até mesmo Gollum disse a mesma coisa uma vez.
Agora o anel não é dele, é meu. E devo dizer
que vou ficar com ele. Gandalf
se levantou. Falou de modo ríspido. Você vai
ser um tolo se fizer isso, Bilbo disse ele.
Você torna isso claro a cada palavra que diz.
O anel se apoderou de você e isso foi longe
demais. Largue dele! E então você poderá ir
também, e ser livre.
Eu vou fazer como quiser e irei como desejar
disse Bilbo obstinadamente.
Agora, meu querido hobbit! disse Gandalf. Por
toda sua longa existência nós fomos amigos,
e você me deve alguma coisa. Vamos lá! Faça
como prometeu: desista dele!
Bem, se você quer o anel para você, diga logo!
gritou Bilbo. Mas você não vai tê-lo. Eu não
vou dar o meu precioso para ninguém. Sua mão
buscou o punho da pequena espada. Os
olhos de Gandalf brilharam. Logo será a minha
vez de ficar furioso disse ele. Se você disser
isso de novo, eu fico. Aí você verá Gandalf,
o Cinzento, se revelar. Deu uns passos em direção
ao hobbit, e parecia ficar cada vez mais alto
e ameaçador; sua sombra enchia toda a sala. Bilbo
recuou para a parede, resfolegando, a mão agarrada
ao seu bolso. Ficaram por um tempo olhando um
para o outro, e o ar da sala zunia. Os olhos
de Gandalf continuavam em cima do hobbit. Lentamente
suas mãos relaxaram e ele começou a tremer.
Não sei o que aconteceu com você, Gandalf! disse
ele. Você nunca foi assim antes. O que está
acontecendo? Ele é meu, não é? Eu o achei, e
Gollum teria me matado se eu não o tivesse guardado.
Não sou um ladrão, não importa o que ele tenha
dito.
Eu nunca chamei você de ladrão respondeu Gandalf.
E também não sou ladrão. Não estou tentando
roubar você, mas ajudá-lo. Eu queria que você
confiasse em mim como confiava. Ele se virou
e a sombra sumiu. Ele
pareceu diminuir, e voltou a ser um velho grisalho,
curvado e preocupado. Bilbo
passou a mão sobre os olhos. Sinto muito! disse
ele. Mas me senti tão estranho. E apesar disso
seria de certo modo um alívio não ter mais de
me preocupar com ele. Ele cresceu na minha mente
nos últimos tempos. Às vezes eu sentia que ele
era um olho me vigiando. Estou sempre sentindo
vontade de colocá-lo e desaparecer, sabe...
E me perguntando se ele está a salvo, e tocando
nele para ter certeza. Tentei trancá-lo, mas
descobri que não podia descansar sem ele no
bolso. Não sei por quê. Parece que não consigo
me decidir.
Então, confie em mim disse Gandalf. Já está
decidido. Vá embora e deixe-o aqui. Deixe de
possuí-lo. Dê-o a Frodo e eu tomarei conta dele. Bilbo
ficou parado por um momento, tenso e indeciso.
Depois suspirou. Está bem disse ele com um esforço.
Eu vou! Então encolheu os ombros e sorriu com
certa aflição. Afinal de contas, todo esse negócio
de festa foi por causa disso: distribuir um
monte de presentes de aniversário, e de alguma
forma facilitar as coisas para também dar o
anel. No final das contas, as coisas não ficaram
mais fáceis, mas seria uma pena desperdiçar
todos os meus preparativos. Estragaria a brincadeira.
Na verdade, destruiria o único motivo que eu
via na coisa toda disse Gandalf.
Muito bem! disse Bilbo. Ele vai para Frodo,
com todo o resto. Ele respirou fundo. E agora
devo ir, ou alguém vai me pegar. Eu disse adeus,
e não agüentaria fazer tudo de novo. Apanhou
seu saco e se dirigiu para a porta. É
mesmo! gritou Bilbo. E o meu testamento e todos
os outros documentos também. É melhor você pegá-lo
e entregá-lo em meu lugar. Será mais seguro.
Não, não dê o anel para mim disse Gandalf. Coloque-o
sobre a lareira. Estará a salvo lá até que Frodo
venha. Eu esperarei por ele. Bilbo
tirou o envelope, mas, no momento em que ia
colocá-lo ao lado do relógio, sua mão deu um
arranco para trás e o pacote caiu no chão. Antes
que Bilbo pudesse apanhá-lo, o mago pulou e
o agarrou, colocando-o em seu lugar. Um espasmo
de raiva passou de leve sobre o rosto do hobbit
outra vez. De repente o espasmo deu lugar a
uma aparência de alívio, com uma risada.
Bem, é isso disse ele. Agora vou indo! Eles
foram para o corredor. Bilbo escolheu sua bengala
favorita e assobiou. Três anões saíram de salas
diferentes, onde tinham estado ocupados.
Está tudo pronto? perguntou Bilbo. Tudo empacotado
e etiquetado? Bem, então vamos! Ele saiu pela
porta da frente. A
noite estava agradável, e o céu preto ponteado
de estrelas. Ele olhou para cima, sentindo o
ar. Que bom! Que bom estar partindo novamente,
partindo na Estrada com os anões! É isso que
eu realmente quis, por muitos anos! Adeus! disse
ele, olhando para sua velha casa e inclinando-se
para a porta. Adeus, Gandalf!
Adeus por enquanto, Bilbo. Cuide-se bem! Você
tem idade suficiente, e talvez também sabedoria.
Cuide-se! Eu não me preocupo. Não se preocupe
comigo. Estou mais feliz que nunca, e isso significa
muita felicidade. Mas chegou a hora. Meus pés
estão sendo impulsionados de novo, finalmente
acrescentou; e então, numa voz baixinha, como
se fosse para si mesmo, cantou suavemente no
escuro: A Estrada em frente vai
seguindo Deixando
a porta onde começa. Agora longe já vai indo, Devo seguir,
nada me impeça; Em seu encalço vão meus
pés, Até a junção
com a grande estrada, De muitas sendas através. Que vem depois?
Não sei mais nada. Parou
por um momento, silencioso. Então, sem mais
uma palavra, deu as costas às luzes e vozes
nos campos e barracas e, seguido por seus três
companheiros, deu a volta entrando no jardim
e foi descendo rápido o longo caminho. Pulou
a cerca-viva numa parte onde era mais baixa
e chegou às campinas, passando através da noite
como o farfalhar do vento na relva. Gandalf
ficou por um tempo olhando para ele, que sumia
na noite. Adeus, meu querido Bilbo, até nosso
próximo encontro! disse ele suavemente, e entrou
na casa. Frodo
entrou logo depois, e o encontrou sentado no
escuro, mergulhado em pensamentos. Ele se foi?
perguntou ele.
Sim respondeu Gandalf. Finalmente ele se foi.
Tomara, quero dizer, eu esperava até esta noite
que tudo fosse apenas uma brincadeira disse
Frodo. Mas no fundo eu sabia que ele realmente
queria ir. Queria ter entrado um pouco antes,
apenas para vê-lo partir.
Acho realmente que ele preferia escapulir despercebido
no final disse Gandalf. Não se preocupe muito.
Ele ficará bem agora. Ele deixou um pacote para
você. Ali está! Frodo
pegou o envelope da lareira e olhou-o, mas não
o abriu.
Nele você encontrará o testamento e todos os
outros documentos, eu acho disse o mago. Você
é o dono de Bolsão. E também, eu acho, você
vai encontrar um anel de ouro.
O anel! exclamou Frodo. Ele me deixou o anel?
Gostaria de saber por quê! Mas ele ainda pode
ser útil.
Pode ser e pode não ser disse Gandalf. Eu não
faria uso dele, se fosse você. Mas guarde-o
em segredo, e a salvo! Agora vou dormir. Como
dono de Bolsão, Frodo sentiu que era seu doloroso
dever dizer adeus a todos os convidados. Rumores
sobre acontecimentos estranhos tinham agora
se espalhado em todo o campo, mas Frodo apenas
dizia não
há dúvidas de que tudo será esclarecido de manhã.
Por volta da meia-noite, vieram carruagens para
as pessoas importantes. Uma a uma, elas foram
rolando colina abaixo, lotadas de hobbits saciados,
mas muito insatisfeitos. Vieram jardineiros,
e removeram com carrinhos de mão aqueles que
tinham inadvertidamente ficado para trás. A
noite passou lentamente. O sol nasceu. Os hobbits
acordaram muito mais tarde. A manhã passou.
Pessoas vieram e começaram (por ordem de alguém)
a retirar os pavilhões e as mesas e cadeiras,
e as colheres e facas e garrafas e pratos, e
as lanternas, e os arranjos de flores em caixas,
e os restos de papel de bombinhas, e bolsas
e luvas e lenços esquecidos, e a comida que
não tinha sido consumida (um item muito pequeno).
Então várias outras pessoas vieram (por ordem
de ninguém): Bolseiros e Boffins, e Bolgers,
e Tûks e outros convidados que moravam ou estavam
hospedados em lugares próximos. Por volta do
meio-dia, quando até os mais bem alimentados
estavam a todo vapor novamente, havia uma grande
multidão em Bolsão; não convidada, mas não inesperada. Frodo
estava esperando no degrau, sorrindo, mas com
uma aparência bastante cansada e preocupada.
Deu boas-vindas a todos os visitantes, mas não
tinha muito mais para dizer além do que já tinha
dito antes. Sua resposta a todas as indagações
era simplesmente: O Sr. Bilbo Bolseiro foi embora;
pelo que sei, para sempre. Alguns visitantes
ele convidou para entrar, pois Bilbo tinha deixado
mensagens para eles. Dentro
do corredor estava empilhada uma grande variedade
de pacotes e embrulhos e pequenas peças de mobília.
Em cada item havia uma etiqueta. Havia várias
etiquetas deste tipo: Para
Adelard Tûk, e SOMENTE PARA ELE, de Bilbo;
em um guarda-chuva. Adelard tinha dado cabo
de muitos guarda-chuvas não etiquetados. Para
DORA BOLSEIRO em memória de uma LONGA correspondência,
com amor, de Bilbo; num grande cesto de lixo. Dora era a irmã de Drogo e a mulher
mais velha entre os parentes vivos de Bilbo
e Frodo; tinha noventa e nove anos e escrevera
resmas de bons conselhos durante mais de meio
século. Para
MILO COVAS, esperando que seja de utilidade,
de B.B.; numa caneta de ouro e um vidro de tinta. Milo nunca respondia
cartas. Para
o uso de ANGÉLICA, do tio Bilbo;
num espelho redondo e convexo. Ela era uma jovem
Bolseiro, e obviamente considerava seu rosto
bem-proporcionado. Para
a coleção de HUGO JUSTA-CORREIA, de um doador;
numa estante (vazia). Hugo era ótimo para pedir
livros emprestados, e péssimo para devolvê-los. Para
LOBÉLIA SACOLA-BOLSEIRO, como um PRESENTE;
num estojo de colheres de prata. Bilbo achava
que ela se apropriara de grande quantidade de
suas colheres enquanto ele estava longe, na
primeira viagem. Lobélia sabia muito bem disso.
Quando chegou mais tarde naquele dia, pegou
a idéia imediatamente, mas também pegou as colheres. Essa
é apenas uma pequena seleção dos presentes.
A residência de Bilbo ficara realmente entulhada
de coisas no curso de sua longa existência.
Era uma tendência das tocas de hobbits ficarem
entulhadas: pela qual o costume de distribuir
tantos presentes de aniversário foi grandemente
responsável. Não que, é claro, os presentes
de aniversários fossem sempre novos;
havia um ou outro velho mathom
de utilidade esquecida que tinha circulado por
todo o distrito; mas Bilbo geralmente dava presentes
novos, e guardava os que recebia. A velha toca
estava sendo agora um pouco desentulhada. Cada
um dos vários presentes de despedida tinha uma
etiqueta, escrita pessoalmente por Bilbo, e
muitos tinham alguma finalidade especial ou
alguma brincadeira. Mas é claro que a maioria
das coisas foi dada para pessoas que as desejavam
e as receberiam bem. Os hobbits mais pobres,
e especialmente aqueles da Rua do Bolsinho,
se saíram muito bem. O velho Feitor Gamgi ficou
com dois sacos de batatas, uma pá nova, um colete
de lã e uma garrafa de ungüento para as juntas
enferrujadas. O velho Rory Brandebuque, em recompensa
por sua grande hospitalidade, ficou com uma
dúzia de garrafas de Velhos Vinhedos: um vinho
tinto forte que vinha da Quarta Sul, e agora
já maduro, pois tinha sido guardado pelo pai
de Bilbo. Rory desculpou Bilbo, e depois da
primeira garrafa jurou que ele era um bom camarada. Uma
grande quantidade de tudo ficou para Frodo.
E, é claro, todos os tesouros mais importantes,
bem como os livros, quadros, e mobília mais
que suficiente. Tudo isso foi deixado para ele.
Não houve, entretanto, qualquer sinal ou menção
a dinheiro ou jóias: nem um trocado ou uma conta
de vidro foram doados. Frodo
teve uma tarde bastante penosa. Um falso rumor
de que todos os pertences
da casa estavam sendo distribuídos gratuitamente
se espalhou como fogo selvagem, e logo
o lugar estava atulhado de pessoas que não tinham
nada a fazer lá, mas que não podiam ser impedidas
de entrar. As etiquetas se rasgaram e foram
misturadas, e surgiram brigas. Algumas pessoas
tentaram permutas e negociatas no corredor;
e outros tentaram fugir com itens menores que
não eram destinados a eles, ou com qualquer
outra coisa que aparentemente ninguém quisesse
ou protegesse. A estrada que dava para o portão
ficou lotada de carrinhos de mão e carriolas. No
meio da confusão chegaram os Sacola-bolseiros.
Frodo tinha se recolhido por uns momentos e
havia deixado seu amigo Merry Brandebuque de
olho nas coisas. Quando Otho pediu para ver
Frodo, Merry se inclinou educadamente. Ele
está indisposto disse ele. Está descansando.
Você quer dizer escondido disse Lobélia. De
qualquer modo queremos vê-lo. Vá agora e diga
isso a ele! Merry
os deixou esperando longamente no corredor,
e eles tiveram tempo para descobrir seu presente
de despedida, que era o conjunto de colheres.
Isto não melhorou os ânimos. Finalmente foram
conduzidos até o escritório. Frodo estava sentado
à mesa com um monte de papéis em sua frente.
Parecia indisposto pelo menos para encontrar-se
com os Sacola-bolseiros e se levantou, bulindo
com alguma coisa que estava em seu bolso. Mas
conversou com eles de modo educado. Os
Sacola-bolseiros foram bastante agressivos.
Começaram oferecendo preços de barganha (como
se fosse entre amigos) por várias coisas valiosas
e sem etiquetas. Quando Frodo respondeu que
apenas as coisas especialmente endereçadas por
Bilbo estavam sendo doadas, disseram que tudo
era suspeito.
Somente uma coisa está clara para mim disse
Otho. Que você está se saindo muito bem nessa
história. Insisto em ver o testamento. Otho
teria sido herdeiro de Bilbo, se não fosse pela
adoção de Frodo. Ele leu o testamento com muito
cuidado e bufou. Estava tudo, infelizmente,
muito claro e correto (de acordo com os costumes
legais dos hobbits que exigem, entre outras
coisas, sete assinaturas de testemunhas em tinta
vermelha). Derrotados
novamente disse ele à sua mulher. Depois de
esperar sessenta
anos. Colheres? Ninharia! Fez um gesto de desprezo
e saiu queimando o chão. Mas não foi tão fácil
se livrar de Lobélia. Um pouco mais tarde, Frodo
saiu do escritório para ver como as coisas estavam
indo e ainda a encontrou por ali, investigando
cantos e frestas e dando tapas no assoalho.
Ele a conduziu com firmeza até a saída, depois
de a ter livrado de vários artigos pequenos
(mas bastante valiosos) que tinham de algum
modo caído dentro de seu guarda-chuva. A julgar
pelo rosto, parecia que ela estava tendo espasmos
de tanto pensar numa resposta realmente contundente;
mas tudo o que conseguiu encontrar para dizer,
virando-se no degrau, foi:
Você viverá para se arrepender disso, rapaz!
Por que você também não foi? Você não faz parte
deste lugar; você não é um Bolseiro você , você
é um Brandebuque!
Você ouviu isso, Merry? Isso foi um insulto,
eu acho disse Frodo fechando a porta na cara
dela.
Foi um elogio disse Merry Brandebuque. Mas é
claro que o que ela disse não é verdade. Depois
eles deram a volta na toca e expulsaram três
jovens hobbits (dois Boffins e um Bolger) que
estavam fazendo furos nas paredes de uma das
adegas. Frodo também teve uma contenda com o
jovem Sancho Pé-soberbo (neto do velho Odo Pé-soberbo),
que tinha iniciado uma escavação na despensa
maior, onde ele pensou ouvir um eco. A lenda
do ouro de Bilbo excitava tanto a curiosidade
quanto a esperança; pois o ouro lendário (obtido
de modo misterioso, se não positivamente por
meios ilícitos) é, como todos sabem, daquele
que o encontrar a não ser que a busca seja interrompida. Quando
tinha dominado Sancho, colocando-o para fora,
Frodo desabou numa cadeira no salão. Está na
hora de fechar a loja, Merry disse ele. Tranque
a porta e não abra para ninguém hoje, mesmo
que alguém traga um aríete. Depois foi se recompor
com uma já protelada xícara de chá. Mal
tinha se sentado quando ouviu uma batida leve
na porta da frente. Lobélia de novo, com toda
certeza, pensou ele. Deve ter pensado em algo
realmente desagradável, e voltou para dizê-lo.
Ela pode esperar. Continuou
tomando seu chá. A batida se repetiu, bem mais
alto, mas ele não tomou conhecimento. De repente
a cabeça do mago apareceu na janela.
Se não me deixar entrar, Frodo, eu arranco essa
porta e jogo lá embaixo disse ele.
Meu querido Gandalf! Um minutinho! gritou Frodo,
correndo até a porta. Entre! Entre! Pensei que
fosse Lobélia.
Então eu perdôo você. Mas eu a vi agora há pouco
numa charrete em direção a Beirágua, com uma
cara de azedar leite fresco.
Ela já tinha quase me azedado. Honestamente,
eu quase experimentei o anel de Bilbo. Queria
sumir.
Não faça isso disse Gandalf, sentando-se. Tome
cuidado com esse anel, Frodo! Na verdade, foi
em parte por isso que eu vim para dizer uma
única palavra.
Sobre o quê?
O que você já sabe?
Só sei o que Bilbo me disse. Ouvi a história
dele: como o encontrou e como o usou: quero
dizer, na sua viagem.
Eu me pergunto qual história.
Não aquela que ele contou para os anões e colocou
em seu livro disse Frodo. Ele me contou a história
verdadeira depois que eu vim morar aqui. Disse
que você o importunou até que contasse a verdade,
e por isso era melhor que eu soubesse também.
Sem segredos entre você e mim, Frodo, disse
ele; mas isso deve ficar entre nós. O anel é
meu, de qualquer forma.
Interessante! disse Gandalf. E o que você achou
de tudo isso?
Se você quer dizer sobre a invenção de ter ganhado
um presente, bem, achei que a história real
era muito mais provável, e não entendi o motivo
da alteração. Não é muito do feitio de Bilbo
fazer isso, e eu achei muito estranho.
Eu também. Mas coisas estranhas podem acontecer
com pessoas que possuem esse tipo de tesouro
se elas o usarem. Que isso fique como um aviso
para você, para que tome muito cuidado com ele.
Esse anel pode ter mais poderes do que simplesmente
fazer você desaparecer quando desejar.
Não entendo disse Frodo.
Eu também não respondeu o mago. Simplesmente
comecei a pensar no anel, especialmente depois
da noite passada. Não é preciso se preocupar.
Mas se você seguir meu conselho, vai usá-lo
muito raramente, ou nem irá usá-lo. Pelo menos
eu peço que você não o use de qualquer maneira
que possa causar comentários ou levantar suspeitas.
Digo de novo: guarde-o a salvo, e em segredo!
Você é muito misterioso. Está com medo de quê?
Não tenho certeza, por isso não vou dizer mais
nada. Pode ser que eu tenha alguma coisa para
dizer quando voltar. Vou partir imediatamente:
então é adeus por enquanto. Ele se levantou.
Imediatamente?! gritou Frodo. Achei que você
ia ficar no mínimo por mais uma semana. Estava
ansioso por sua ajuda.
Eu realmente queria ajudar você, mas tive de
mudar meus planos. Posso ficar longe por um
bom tempo, mas volto para ver você de novo assim
que puder. Quando você menos esperar, eu vou
aparecer! Chegarei em silêncio. Eu não devo
mais visitar o Condado abertamente com freqüência.
Acho que me tornei muito impopular. Dizem que
sou um incômodo e que perturbo a paz. Algumas
pessoas estão me acusando de realmente ter feito
Bilbo desaparecer, ou coisa pior. Se você quer
saber, estão dizendo que existe um plano armado
por nós dois para tomar posse da riqueza dele.
Algumas pessoas! exclamou Frodo. Você quer dizer
Otho e Lobélia. Que abominável! Eu lhes daria
Bolsão e todo o resto, se pudesse ter Bilbo
de volta e ir com ele vagueando pelos campos.
Eu amo o Condado. Mas de alguma forma começo
a sentir que gostaria de ter ido embora também.
Fico pensando se poderei vê-lo novamente. Frodo
o acompanhou até a porta. Ele acenou pela última
vez e começou a andar num passo surpreendente;
mas Frodo achou que o velho mago parecia mais
curvado que o normal, quase como se estivesse
carregando um grande peso. A noite estava chegando,
e o seu vulto com a capa rapidamente desapareceu
no crepúsculo. Frodo não o viu novamente por
um longo tempo.
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